‘A música popular e o esporte, notoriamente o samba e futebol, acabam sendo frestas onde você pode construir sentidos de vida diante de um muro de exclusão’, analisa o historiador Luiz Antonio Simas

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Foto: Samba & Carnaval, 1920, Di Cavalcanti

Há uma simbiose entre o Brasil e o samba. Um não existe sem o outro. Mas em que momento este ‘casamento’ – sem qualquer possibilidade de divórcio – foi selado? Quando o gênero musical se tornou sinônimo de brasilidade? O historiador Luiz Antonio Simas, autor do Dicionário da História Social do Samba, produzido em coautoria com o sambista e historiador Nei Lopes, responde essas e outras perguntas em entrevista exclusiva à Agenda Bonifácio. “O samba é a grande aventura de reinvenção da vida no precário”, analisa.

O especialista fala sobre o primeiro samba com registro no mercado,  Pelo Telefone, de Donga e Mauro Almeida, da importância das ‘tias’ baianas na formação do ritmo no Rio de Janeiro, o papel que o gênero tem no contexto social e o conceito do Carnaval, festa que alguns ainda torcem o nariz. “Se olhar os desfiles das escolas de samba, são um complexo simultâneo de exibições artísticas raras vezes visto no mundo. Ali você tem dramaturgia, cenografia, moda, música, o canto coletivo, orquestra de percussão muito sofisticada – as baterias -, que traz esse sentido poderoso”, sintetiza. Confira a entrevista completa a seguir:

Existe um marco no Brasil em relação ao nascimento do samba: a gravação de Pelo Telefone, no início do século passado. O gênero musical nasceu ali mesmo?

A gravação do Pelo Telefone é um marco na história do samba dentro da indústria fonográfica. Porque é muito difícil dizer qual foi o primeiro samba. Se a gente for estudar no século 19, vamos ver que a palavra ‘samba’ já aparece, mas se referindo a qualquer festa que tem relação com as populações escravizadas ou descendentes de africanos. Se tinha festa com música e dança, era usada a expressão ‘samba’ que, aos poucos, vai se definindo como ritmo ou coreografia. Mas é impossível dizer qual foi o primeiro, até porque provavelmente não existe. Como todo gênero musical vai se codificando a partir de uma raiz africana, que segundo estudos de etnomusicólogos, de historiadores da música, tem certamente fundamentação na região de Congo e Angola. E aqui no Brasil vai se redefinindo no samba de roda baiano, no de coco nordestino, no batuque de Pirapora de Bom Jesus em São Paulo e no urbano do Rio de Janeiro. O Pelo Telefone é um marco da indústria fonográfica e do samba, porque é o primeiro registrado como tal que acaba fazendo um grande sucesso. É gravado em 1916 para o Carnaval do ano seguinte. Mas a gente já tem referência de diversas gravações anteriores como o Um Samba na Penha, gravado pela Pepa Delgado (1907), que ainda não seja exatamente como a gente está acostumado a ouvir hoje, está ali no início do século 20. O Pelo Telefone marca o surgimento no Brasil de um mercado mais sólido para música. 

E um grande berço do samba no Rio foi o quintal da Tia Ciata. Queria que me falasse sobre essa figura, se ela foi realmente a mãe do samba carioca?

Ela é uma figura muito peculiar, porque não temos tantas referências históricas sobre ela. O que sabemos que era baiana, da região de Santo Amaro da Purificação, e vem para o Rio na grande migração dos baianos, sobretudo no pós-abolição. E o Rio era a Capital do Brasil, com uma peculiaridade: recebia descendentes de africanos das mais diversas procedências. Vêm os baianos, a turma do Maranhão, de Pernambuco, os que trabalhavam nos cafezais do Vale do Paraíba, no Sul. Vira um caldeirão africano, aquilo que Lima Barreto chama de ‘aringa africana’ e que Heitor dos Prazeres denominou de ‘África em miniatura’. E Roberto Moura, que escreveu um livro sobre Tia Ciata, chamou de ‘Pequena África’. A região central do Rio era profundamente marcada pela presença de descendentes africanos e pelo matriarcado das tias que vieram da Bahia e acabavam sendo lideranças comunitárias, ligadas aos terreiros de candomblé. E elas trabalhavam no comércio de rua. Tia Ciata, por exemplo, tinha um tabuleiro de doces na esquina entre as ruas Uruguaiana e Sete de Setembro no Rio. Mas havia diversas outras tias. Tia Amélia, a mãe do Donga, Tia Perciliana de Santo Amaro, mãe de João da Baiana, outra referência do samba, além de Tia Carmem do Xibuca. Esse matriarcado negro é muito forte na história da cidade. E na casa da Tia Ciata, que ficava na região central da Pequena África, era um ponto de encontro dessa geração que vai codificando o Rio, o samba carioca, muito ligado ao samba de roda baiano. O samba urbano vai se configurar de uma forma diferente, mais na região do bairro do Estácio de Sá, com Ismael Silva, Brancura. Mas Tia Ciata era fundamental, porque era Iya Kekerê, auxiliar de um grande pai de santo do Rio de Janeiro. Ela exercia uma liderança religiosa e a casa dela era um centro de sociabilidade negra deste Rio de Janeiro, profundamente marcado pela chegada dos baianos. Além disso, temos referências de que era compositora. Tivemos várias ‘tias Ciatas’, muitas foram apagadas da memória da construção da história da música e da própria cidade. O matriarcado negro é absollutamente vinculado à configuração da história do samba no Rio de Janeiro. 

Uma vez entrevistei Lira Neto que citou uma frase sua que diz que ‘o samba é a mais fascinante e sofisticada aventura civilizatória do Brasil’. Gostaria que me explicasse essa declaração.

Primeiro é uma provocação, porque a gente está muito acostumado a um conceito de civilização que é de recorte eurocentrado. Ampliar a ideia do que seria civilidade acho interessante. Segundo porque o samba não se limita a um movimento rítmico coreográfico musical. A rigor é o que costumo chamar de fato social completo. Um conceito que trazemos da antropologia. Porque em torno dele circula muita coisa, como a maneira de celebrar o nascimento, como lamenta a morte, come, bebe, se veste, brinca, ama, chora, briga. Então há um complexo em torno do ritmo que é a construção de uma verdadeira civilização. Ele define identidade e, portanto, traz essa pegada muito forte. Nos meus trabalhos, em alguns textos, costumo diferenciar samba com letra minúscula com o da letra maiúscula. Em minúscula, estou me referindo a um fenômeno coreográfico e musical. Já em Samba é o complexo de saberes que ele envolve, que é muito profundo, amplo. Ele cria códigos de vida. Tem portanto a construção de um complexo de civilidade. É a grande aventura de reinvenção da vida no precário. E um outro elemento fundamental é que a ideia de civilização sempre pressupõe um fenômeno coletivo, que é o samba. Aliás, toda cultura diaspórica é coletiva, porque se trata de um fenômeno que fragmenta, que quebra laço de identidade, de noção de pertencimento em grupo. Ela te joga, no fim das contas, num processo radical de morte simbólica e que pode ser até física. Agora, se toda diáspora é esse processo de desagregação, de pertencimento, toda cultura dela, em contrapartida, se fundamenta na construção do que foi perdido. Então não existe cultura de diáspora que não seja coletiva, nada está fundamentado na individualidade. Isso é marcantemente civilizatório. 

O samba promoveu visibilidade, inclusive no início do século passado, para pessoas até então invisíveis. Acha que ele permanece com a mesma missão?

Também, não tenha dúvida. Porque somos um país que traz a carga de quatro séculos de escravidão e um processo de abolição que pode ser resumido perfeitamente – pode esquecer 200 teses, 40 livros, 35 textos acadêmicos – pelo samba da Mangueira de 1988, Cem Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?, que fala sobre uma abolição incompleta. E tem um verso que acho definitivo: Pergunte ao criador, quem pintou essa aquarela. Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela. Ou seja, chama atenção no processo de abolição que não vem acompanhado da ampliação do exercício da cidadania, mercado formal de trabalho, nada disso. A música popular e o esporte, notoriamente samba e futebol, acabam sendo frestas onde você pode construir sentidos de vida diante de um muro de exclusão. E o samba continua tendo isso. Foi fundamental na virada do século 19 para 20. Quando a gente falou no início da conversa sobre Pelo Telefone, falamos da inserção do negro brasileiro no mercado através da arte no pós-abolição. Isso é de uma relevância absoluta, porque o parlamento estava fechado (para os negros), a universade estava fechada, então vão buscando construir caminhos no exercicio da cidadania, nas frestas destes sistemas de exclusão. Quando falo de cidadania, inclusive, não estou me limitando a uma ideia liberal, mas praticar a cidade, o lugar. O samba tem essa dimensão profunda e continua tendo. Vejo muito disso no Rio de Janeiro, uma cidade desigual e violenta, mas que ao mesmo tempo pulsa uma quantidade exuberante de sambas de roda que continuam aí, dando sentido à vida de muita gente. 

Você citou a Mangueira. A principal festa popular brasileira é o Carnaval e, ainda hoje, é algo que ainda sofre muito preconceito. Por que muitos ainda não a encaram como arte?

A maioria não, porque tem uma visão ainda que liga muito a festa aos descompromisso, à vadiagem, o que é um verdadeiro absurdo, porque é a perda do sentido do que é a festa ao longo da história humana. E estou falando da festa do Carnaval, não de aniversário em que a gente reúne cinco pessoas e canta parabéns. As grandes festas coletivas restauram uma ideia de coletividade diante de um mundo que cada vez mais nos individualiza. Nós somos jogados numa dimensão que é dada no tempo do relógio pelo mercado de trabalho, uma lógica inclusive ligada ao capital, que individualiza radicalmente a experiência humana. A festa reconstrói um certo sentido coletivo e pertencimento. E o Carnaval, se olhar os desfiles das escolas de samba, são um complexo simultâneo de exibições artísticas raras vezes visto no mundo. Ali você tem dramaturgia, cenografia, moda, música, o canto coletivo, orquestra de percussão muito sofisticada – as baterias -, que traz esse sentido poderoso. Gosto muito de citar uma conversa que tive em certa ocasião com Martinho da Vila, que até está na internet, e virei para ele e falei que meu avô adorava dizer que ‘a gente festeja porque a vida é ruim. Se a vida fosse boa não precisava fazer festa’. O Martinho concordou inteiramente e falou muito disso, que até em ‘velório você festeja’. Porque é uma recusa fundamental a um processo de aniquilação do ser, tem essa relevância. E para citar outro personagem, estava fazendo pesquisa na época que estava escrevendo O Dicionário da História Social do Samba, com Nei Lopes, e vi uma reportagem com Beto sem Braço, compositor da Império Serrano, da Vila Isabel. Ele tinha ganhado um dinheiro forte, porque Zeca Pagodinho gravou uma música dele que foi sucesso, e gastou de forma fulminante, dando uma festa numa comunidade do Rio, Rato Molhado, histórica. Perguntaram para ele, que era um grande poeta do samba, o que o levou a torrar tudo de uma vez. E ele dá uma resposta com uma frase que gosto muito: ‘fiz isso porque o que espanta miséria é festa’. É uma miséria existencial. A festa tem esse sentido importantíssimo da reconstrução de uma ideia coletiva de vida, mas esse Brasil que se gostaria europeu definitivamente repudia esse tipo de coisa. 

Há um século os modernistas clamavam uma arte essencialmente brasileira. Na sua opinião, ela existe?

Essencialmente brasileira não, porque se é brasileira não pode ter essência, já que somos filhos de encruzilhadas. Mas acho que existe uma arte brasileira, o que chamo de complexo simbólico das brasilidades, que se caracteriza pela construção do sentido de vida da encruzilhada, dos caminhos que se encontram. Gosto muito de usar isso como um conceito, porque as pessoas fazem uma confusão entre encruzilhada e labirinto. Este último você não consegue sair, já a primeira não. Quando falam ‘o Brasil está em uma encruzilhada’, respondo ‘quem dera’. Porque é um ponto de encontro, caminhos que se cruzam. A brasilidade é formada por essas referências todas. Neste sentido podemos falar de um complexo simbólico da brasilidade sim, não tenha dúvida. Até no sentido que os modernistas tentam evocar, mas fruto desse caldeirão. O que caracteriza a cultura brasileira é essa dinâmica, muito ampla. Então não tem como buscar a construção algo que seja puro, essencial, que não seja rasurado. É misturada, resultado de muita tensão, vive no fio da navalha entre a violência e a beleza. Acho que isso configura um complexo simbólico de elaboração de modos de vida que gosto de chamar de brasilidade. E que de certa maneira com o que os modernistas buscavam como uma cultura brasileira. 

Qual seu samba preferido?

De todos os tempos? O meu samba preferido muda (risos). Mas se eu tivesse de levar um samba para uma ilha deserta, para ficar ouvindo, levaria o da dupla Bide e Marçal, chamado A Primeira Vez. Acho de uma beleza estonteante, é a configuração do samba carioca, uma lírica do ponto de vista da letra espetacular. Se tivesse de escolher o ‘samba perfeito’ seria esse. Mas se você me perguntar daqui uma semana, pode ser que responda outro (risos).

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 28 de dezembro de 2022

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