‘Ainda vivemos um inferno astral no Brasil e precisamos de todo um processo de consciência coletiva e reparação histórica para sairmos dele’, afirma a cientista social e slammer, Midria

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Novembro de 2022. Dois anos após encontros virtuais, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) retomou o evento presencial.  As ruas de pedra da cidade histórica ficaram tomadas de encontros, personalidades, apaixonados por literatura e muita arte. E um dos nomes que se destacaram na edição histórica – a 20ª -, que homenageou a escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, foi a slammer e cientista social Midria, 23 anos. 

Em Pátrios Lares, mesa de abertura que discutiu o legado da primeira romancista negra brasileira, a artista, que nasceu na Zona Leste de São Paulo, declamou poema da homenageada e arrancou aplausos. Também durante o evento literário participou de outras atividades e se transformou em um dos grandes nomes desta edição. “Fico muito honrada de ter estado neste espaço ao lado de mulheres incríveis, do Brasil e do mundo, contando um pouco das suas vivências, escritas, do modo como entendem a sociedade e como querem transformar, que acho que era o que a Maria Firmina fazia também do seu jeito, na sua época.”

Autora do poema A Menina que Nasceu sem Cor, cujo vídeo viralizou (veja aqui), ela fala sobre como promove a luta antirracista com sua arte, a importância da revisão histórica que já estamos presenciando, o respeito ao lugar de fala e quais são os caminhos para uma sociedade mais igualitária. “Quando a gente fala sobre esse reinvindicar o seu lugar de ancestralidade, a sua identificação étnica, estamos dando um primeiro passo nessa construção da luta antirracista em um país que não queria que a gente estivesse aqui.” Confira, a seguir, a entrevista completa:

Você acaba de participar do principal evento literário do país, a Flip, que homenageou Maria Firmina dos Reis. Inclusive fez uma performance na mesa de abertura, que discutia seu legado. Como avalia esta edição histórica?

Foi muito feliz para mim participar da Flip este ano. Já tinha ido em 2019 para assistir. Acho que a gente tem um buraco, porque quando olhamos para história, são 20 anos do evento e é a primeira mulher negra homenageada, então tem muito significado. Fico muito honrada de ter estado neste espaço ao lado de mulheres incríveis, do Brasil e do mundo, contando um pouco das suas vivências, escritas, do modo como entendem a sociedade e como querem transformar, que acho que era o que a Maria Firmina fazia também do seu jeito, na sua época. Me senti agraciada pela oportunidade de estar lá na abertura e nas mesas. 

Em um dos versos que falou no evento, disse que o Brasil vive ‘500 anos de inferno astral’. É uma frase curta que diz muito. Como resumir o que ela traz?

O Brasil é inventado, é uma construção que a gente tem. Daí chega aqui a galera colonizadora. Ouvi na Flip a Waldete Tristão, autora de livros infantis, e ela falava que chamar de colonizador foi muito gentil. Foram pessoas ladras, estupradoras, e que chegaram aqui destruindo tudo e todas as pessoas que passavam pela frente. Falar desses 500 anos de inferno astral é fazer referência a essa história que não acabou, porque há o genocídio da população negra, da indígena, a destruição das florestas. É o mesmo modus operandi que existia quando chegam as primeiras caravelas e continua com outros formatos, se desdobrando. Temos a ascensão não só no Brasil, mas no mundo inteiro, da extrema direita, que a gente vai olhar e ela tem os mesmos valores e ideais dessas pessoas que eram colonizadoras e não tinham nenhum compromisso com a vida coletiva, mas com seus próprios interesses, perspectivas e que desrespeitam outros modos possíveis de vida coletiva na Terra. Ainda vivemos esse inferno astral no Brasil e precisamos de todo um processo de consciência coletiva e reparação histórica para sairmos dele. 

Seu poema, A Menina que Nasceu sem Cor, também foi lido lá. Antes disso já havia viralizado. Esperava tamanha repercussão e de que maneira a sua arte ajuda a promover a prática antirracista?

Não sei se esperava a repercussão, mas entendi um pouco dessa dimensão do que é a Flip, um evento muito significativo. Depois de dois anos sem acontecer presencialmente havia uma expectativa das pessoas no geral em assistir. Esperava esse ganho de divulgação e espaços. E a luta antirracista se dá de muitas formas. No contexto brasileiro, um dos processos que a gente vive que é o de embranquecimento da sociedade é um culto a ele, como naquele quadro famoso A Redenção de Cam (1895, de Modesto Brocos) que é justamente essa imagem ‘ideal’. E não é algo que passa na cabeça só agora, porque há 100 anos tinha gente fazendo congresso eugenista no Brasil, dizendo ‘daqui 80 anos vamos ter muitas pessoas negras no país e como vamos embranquecer, porque senão eles vão dominar?’. Quando a gente fala sobre esse reinvindicar o seu lugar de ancestralidade, a sua identificação étnica, estamos dando um primeiro passo nessa construção da luta antirracista em um país que não queria que a gente estivesse aqui. Em que a expectativa é que eu não fosse uma mulher negra, mesmo que ainda de pele clara, a expectativa é que fosse branca. Tem esse processo de identificação que é importante, é um pouco disso que falo em A Menina que Nasceu sem Cor, para que a gente tenha orgulho, reverencie as nossas raízes e para que elas sejam ponto de força na construção de outros mundos onde a gente consiga habitar em plenitude de existência. Que olhe para trás na nossa história e não pense que foram apenas pessoas escravizadas, mas que tinham uma vida plena, potência, família, sonhos, medos, sentimentos e tudo isso é suprimido para essa narrativa única que é a de quem é racista até hoje e desumanizando as pessoas negras. É um pouco por esse caminho. 

Você é uma das criadoras do USPerifa. Do que se trata e como ele fomenta o slam, movimento que tem ganhado força nos últimos anos do país e do qual é representante, que fomenta a poesia chamada marginal?

Para explicar o slam a gente vai fazer uma viagem. Começou na década de 1980 em Chicago, nos Estados Unidos, o criador se chama Marc Smith, que é um poeta, ator, trabalhava na construção civil e queria encontrar formas de democratizar o acesso à poesia. Tem outras pessoas que contribuíram muito lá nos Estados Unidos, como a Kelly Smith. Em resumo é uma competição de poesia em que qualquer pessoa pode participar precisando ter três textos autorais de até três minutos. Enquanto você recita não pode fazer uso de nenhum objeto cênico, instrumento musical ou figurino. É só você, suas palavras, corpo, voz e a performance que consegue realizar com a junção de tudo isso. Tem também slams em Libras, para pessoas mudas, para mostrar que a voz sai do corpo de todos os jeitos. E o slam veio para o Brasil em 2008 e foi se popularizando. O primeiro é o ZAP (Zona Autônoma da Palavra), feito pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e a Frente 3 de Fevereiro, que são grupos que atuam à frente do teatro hip hop, ações antirracistas, muito massa o trabalho deles. A gente tem hoje, no Brasil, mais de 250 comunidades de slam mapeadas em mais de 20 estados, entre ativos e não ativos. Slam é esse lugar onde as pessoas chegam e conseguem expor a sua subjetividade, aquilo que estão tentando de uma maneira que chegue em outros espaços da sociedade. E a literatura marginal periférica é esse movimento mais amplo, de sarau, slams, tem também a batalha de rimas. É esse lugar de encontro e de escuta que por muitas vezes não são ouvidas. 

Se há 100 anos, na Semana de Arte Moderna, não havia uma escritora e nenhum representante negro, agora, dez décadas depois, o cenário mudou. Você acredita que a arte hoje é mais diversa?

Acho que sim, temos muito mais abertura e uma preocupação geral em reparar isso. Vejo muito isso nas curadorias que são feitas de grandes eventos. Na Flip deste ano tivemos uma diversidade muito grande, pessoas indígenas, brancas, esses vários lugares de minorias, que na verdade são maioria e são silenciadas. Com certeza a gente tem um avanço muito grande, precisamos de muito mais, porque é isso, estamos na arte, mas sempre fomos comercializados. É só olhar sambistas, jogadores de futebol, que estavam na mídia desde sempre e que muitas vezes não eram devidamente remunerados pelos seus trabalhos. Até hoje temos questões em relação a isso, pagarem menos para pessoas negras. Ou só chamam no mês de novembro para trabalhos (Consciência Negra). Caminhamos, mas tem muita coisa a ser feita. Espero que continuemos cada vez com mais espaço.

E a Flip também foi um evento de maioria feminina. Durante muito tempo as mulheres sofreram apagamento na história do país. A gente já alcançou o papel que merece na sociedade ou ainda falta?

A gente tem ainda algumas coisas a caminhar, principalmente no sentido de respeito pleno ao lugar de fala de cada pessoa. Por exemplo, nesta semana tinham deputadas ou vereadoras sendo silenciadas na Câmara por políticos que não queriam que fossem falado sobre projeto de lei do aborto. Realmente silenciando, gritando, batendo na mesa para uma representante do povo não falar. Temos um caminho muito positivo de avanços, oportunidades, equalização e muitos acessos, mas ainda tem um trabalho muito grande a ser feito para que as próximas gerações não levem esse mal no sentido de olhar e dizer ‘eu posso diminuir uma mulher’ e isso se estende a todas as minorias. Que a gente consiga construir um outro olhar menos pautado nessa ótica do machismo. 

Arte é resistência?

Sim. Existem várias formas de resistir. Ela é isso, mas também de mostrar a subjetividade, de encontro. É um campo que necessariamente dialoga com a vida de quem está produzindo e infelizmente existem muito mais espaços para pessoas que não estavam resistindo terem suas vozes ecoadas, compartilhadas, mas sinto que agora temos um espaço cada vez mais potente para todas as pessoas compartilharem. O slam no Brasil ganhou muito essa cara de resistência, é um espaço que entre tantas outras coisas fala sobre isso.

Qual seu maior sonho hoje?

Tenho vários, mas um meio utópico e amplo seria de que qualquer pessoa, independentemente de onde seja, consiga desenvolver seus talentos, potências e colocar no mundo mudanças positivas. Que todo mundo consiga viver seu maior potencial. Tem uma cantora que se chama Nayra Lays, adoro ela, amiga que mora em Grajaú, e ela tem uma música que diz assim: ‘Quero viver e não só sobreviver/ Fartura de vida plena e essência/Nós merecemos fartura de vida inteira, imensa, imensa’. Acho que é isso. Essa fartura de vida, existir de maneira plena e que esteja disponível para cada vez mais pessoas. 

Acha que o Brasil é, de fato, independente?

Sou Cientista Social de formação, terminei esse ano. Olhando por uma ótica de sistema e mundo, ainda temos uma dependência do sistema econômico global. Somos independentes no papel, ‘República Federativa’, mas ainda não somos independentes imaginários. Temos muitos grupos desse imaginário colonial europeu invasor que ainda estão entre a gente. Temos de fazer a reparação, mudanças e transferências dessas coisas que foram acumuladas por uma parte da população e deixaram toda outra parte silenciada. Essas pessoas, nós da periferia, negros, indígenas, as mulheres, enfim, nunca ficamos 100% independente. Precisamos ter de volta a independência que é natural, humana e todo mundo nasceu com ela. Só precisamos liberar os imaginários para garantir isso para todo mundo. 

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 14 de dezembro de 2022

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