“Imperatriz Leopoldina não só não foi amada como foi publicamente humilhada por D. Pedro I”, diz a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl

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Uma das personagens mais emblemáticas da história do Brasil, D. Maria Leopoldina, a primeira imperatriz brasileira, viveu menos de dez anos no país e morreu aos 29 anos, por complicações de um aborto espontâneo. Arquiduquesa da família Habsburgo e filha do imperador Francisco I, da Áustria, Leopoldina casou-se por procuração com D. Pedro I, numa união arranjada, e chegou ao Brasil com apenas 19 anos, em 1817. Teve com D. Pedro 7 filhos, sendo que quatro deles morreram precocemente. Dois fatos marcam a biografia de Leopoldina. Um deles foi o papel importante desempenhado pela imperatriz como conselheira política de D. Pedro no processo de independência. O outro foi a humilhação pública imposta a ela por D. Pedro, um mulherengo sem maiores pudores, que manteve um romance público e escandaloso com Domitila de Castro e Melo, a Marquesa de Santos, durante boa parte da vivência de D. Maria Leopoldina no Brasil. A imperatriz era muito admirada pelas camadas pobres da população, mas morreu abandonada, amargurada e mergulhada em dívidas em 1826. “Leopoldina veio para o Brasil não só por uma missão diplomática, para ser imperatriz, mas com expectativas românticas; ela não estava preparada para a humilhação que recebeu de D. Pedro”, diz a psicanalista, jornalista e escritora Maria Rita Kehl, na entrevista a seguir. Maria Rita produziu um perfil psicológico de D. Maria Leopoldina, baseado nas cerca de 850 cartas que ela escreveu no período em que viveu no Brasil. O ensaio de Maria Rita é um dos que fazem parte do livro “D. Leopoldina – Cartas de uma Imperatriz”, publicado em 2006 pela Estação Liberdade. “Ela sofreu muito, por isso morreu com 29 anos”, assegura Maria Rita.


Gostaria que a senhora falasse da experiência de montar um perfil psicológico de uma personagem histórica como a imperatriz Leopoldina, a partir da correspondência pessoal dela, onde ela fala abertamente sobre suas angústias e frustrações, bem diferente das referências usuais da historiografia oficial. O que mais lhe chamou a atenção sobre D. Maria Leopoldina a partir dessas cartas?

O que mais me chamou a atenção – e ela, obviamente, conta isso – é que ela vem para o Brasil muito feliz. Porque a irmã mais velha foi casada com ninguém menos do que Napoleão Bonaparte. Leopoldina não queria um príncipe encantado, ela também queria exercer um papel político importante para os Habsburgo. Quando o príncipe de um país distante, mas uma colônia grande, a convida para um casamento, para fazer uma aliança, ela aceita. Nas primeiras cartas, o mais comovente é que ela acha, pelos retratinhos, D. Pedro um guapo, um homem bonito. Mas ela vem cheia de sonhos do papel político que ela pode representar com esse casamento — porque assim eram os casamentos reais, aliança com outras Cortes. 

As cartas acabam revelando o amadurecimento rápido e forçado de Leopoldina, que chegou muito jovem ao Brasil. Em 1822, com apenas 25 anos, ela teve uma participação política relevante, juntamente com o Bonifácio de Andrada, aconselhando D. Pedro no processo de independência. As cartas indicavam se ela se sentia reconhecida pelo marido e pela Corte por esse papel político?

Não, absolutamente. Mas antes vou contar um detalhe sobre a chegada dela. As primeiras cartas, depois que ela chega toda orgulhosa, já mostram de cara uma grande decepção. O que mais a espanta é que a Corte, ao contrário dos palácios reais austríacos, era uma coisa nojenta. Ela diz: ‘As pessoas fazem as necessidades pelos cantos’. Ela ficou muito mal impressionada com a falta de higiene, com a falta de pompa – nem era isso, mas a sujeira, mesmo. Isso já dá pena, porque ela era muito jovem e já prestava atenção nisso. Em relação a D. Pedro, depois que ele começou a ter um romance com a Domitila (Marquesa de Santos), ela ficou decepcionada, para dizer o mínimo — ela foi humilhada. Ela não diz em nenhum momento que D. Pedro tenha sido uma grande paixão, mas ela veio com expectativas românticas, além das expectativas políticas que falei. Ela não só não foi amada por ele como foi publicamente humilhada. Leopoldina era uma princesa Habsburgo, não era uma arrivista, que queria se dar bem na vida e se deu mal. Ela veio por meio de um acordo, representando o império do pai dela. Ela tinha autoestima, não achava que graças a Deus tinha conseguido uma “coisinha” porque a irmã era mais importante que ela. Ela vem achando que era digna de fazer grandes coisas por esse país com essa aliança. Tem momentos em que D. Pedro começa a aparecer publicamente, na ópera, por exemplo, com a Domitila. Ou seja, ela foi muito humilhada com isso.

Nas cartas, ela identifica rapidamente esse romance de D. Pedro com Domitila. Claro, fica decepcionada. Mas ela ainda se mostra apaixonada ou desejando recuperar o marido?

Não nesses termos, como se fosse um filme americano do século passado. Mas ela se conforma no seu papel, que sabe que é importante. Talvez não tivesse a expectativa da humilhação, que foi crescendo – D. Pedro foi ficando cada vez mais ousado. Aparecer em público com a outra… Muitas pessoas têm amantes no casamento, e não digo apenas os homens, mulheres também têm. Costumo brincar que se a fidelidade fosse algo possível, a gente não teria de jurar na frente do padre ou do juiz. Mesmo assim, muitas vezes diz respeito a juramento. Talvez Leopoldina tivesse se acomodado com a situação, em cumprir com seu papel, se ele não a tivesse humilhado tanto. Se D. Pedro desse uma desculpa, de ter de ir a uma reunião. Ela podia até estar sofrendo – no começo ela gostou dele –, mas a humilhação foi o sofrimento maior. Ela era uma princesa… Tudo bem, hoje em dia, não existe mais essas castas dos impérios. Quanto mais eu for igual à pessoa que faz a faxina da minha casa ou à primeira-dama do país, em termos de respeitabilidade, melhor. Todos merecemos respeito, dignidade e reconhecimento pelo nosso trabalho. Mas Leopoldina é dessa época, para ela era relevante ser a imperatriz que veio se casar com o príncipe e futuro imperador.

Como ela reagia publicamente a essas humilhações? Ela mantinha uma certa circunspecção, não demonstrava publicamente algum tipo de sofrimento?

Não demonstrava, ela era uma princesa. Ela sabia como se comportar – quem não sabia era ele. Digo em termos do cargo que ela ocupava. Leopoldina era de uma casa real mais importante que a dele. Ela sabia se comportar porque era representante da dinastia dos Habsburgo no Brasil. E também uma figura pública. Não temos muita noção do que é, nessas sociedades estamentais, você pertencer a uma família que só tem dinheiro, como seria hoje em dia. Vou dar um exemplo que prezo muito, os Moreira Salles. Eles são de uma família que sempre teve muito dinheiro. Mas, por uma questão de caráter e de educação, eles fazem com o dinheiro que herdaram da família institutos gratuitos em São Paulo e no Rio em que a cultura fica acessível. É um exemplo “leopoldinesco”: não são herdeiros de uma família riquíssima que têm casas maravilhosas nas duas cidades, eles devolvem em parte o que eles enriqueceram com o banco. É um exemplo contemporâneo da mentalidade da imperatriz Leopoldina: alguém que percebe o privilégio que teve – no Brasil, quem é um pouco acima da classe média baixa já é um privilegiado, imagina quem é rico de herdar fortuna – e devolve um pouco do privilégio que teve na forma de cultura ou orfanatos, etc. A Leopoldina queria fazer isso, ser uma pessoa pública nesse sentido.

É evidente a influência do romance de D. Pedro com Domitila no processo de depressão que ela mergulhou. Mesmo com o tratamento que recebia de D. Pedro, Leopoldina sempre pareceu apaixonada por ele. É possível dizer que essa imagem de imperatriz, que transparecia em eventos sociais, ajudou a moldar o reconhecimento popular pelas camadas pobres da população que ela obteve na época?

Ela era querida e acessível – no sentido de deixar chegar perto, de deixar beijarem a mão dela. Ela tem uma atitude corporal que indica que ela não está de nariz empinado. Ela tinha muita pena da pobreza que ela viu no Brasil. Não era fácil para ela, ela também tinha um papel intelectual – ajudou D. Pedro I a proclamar a independência.

Esse duplo comportamento inadequado de D. Pedro – no tratamento desrespeitoso com Leopoldina, ao mesmo tempo que não se preocupava em esconder o romance com Domitila – não parece ter impactado na imagem pessoal dele. Nas cartas ela falava como as pessoas em volta dela lidavam com essa situação?

Não que me lembre. O machismo ainda é muito assimilado, até hoje. Faz pouco tempo em que o assassinato em legítima defesa da honra deixou de ser aceito pela Justiça. Até então, um homem que matava uma mulher porque ela tinha um amante ou suspeitava que ela tivesse um e a honra dele estivesse em causa, era justificado que ele a matasse. A campanha “Quem ama não mata”, pelo fim dessa prerrogativa, foi criada nos anos 1980. Faz muito menos tempo, de lá para cá (cerca de 40 anos), do que dos anos 80 para a época da Domitila. A diferença de trato, de que o homem tivesse amantes e a mulher pudesse ser morta, ganhou visibilidade por causa do assassinato da Angela Diniz pelo Doca Street, em 1976. Ele era um playboy, a tratava mal, tinha um monte de amantes, desconfiou dela e a matou. E a campanha do “Quem ama não mata” começou daí.

Casamentos arranjados e o papel secundário exercido pelas mulheres – mesmo de uma imperatriz – eram norma nas relações das famílias reais da Europa. Mas dá para considerar normal, mesmo para os padrões da época, o que Leopoldina passou nas mãos de D. Pedro?

É claro que a gente não sabe o que várias imperatrizes europeias passaram nas mãos de seus maridos. De qualquer maneira, o papel subalterno da mulher, mesmo sendo uma imperatriz, durou muito tempo no mundo, embora sempre tenha existido rainhas, como Elizabeth II. A condição não é considerar normal – não tenho essa estatística, e no livro não tem nenhuma indicação a respeito, como eram as outras–, a questão é que ela não estava preparada para isso. Leopoldina veio para o Brasil para ser uma imperatriz e se casar com um homem por quem mais ou menos se apaixonou pela foto. Ou seja, não veio só por uma missão diplomática, mas com expectativas românticas. A gente pode imaginar o que ela passou: a Corte portuguesa no Brasil – um país que era uma colônia selvagem, muito pouco urbanizada – a impressionou. Pela sujeira, com o hábito de as pessoas cuspirem no chão e, principalmente, com a falta de educação na própria Corte. Ainda por cima, ela veio encantada pelo marido, e o marido a humilha… Ela foge do palácio, vai para Quinta da Boa Vista. Ela sofreu muito, morreu com apenas 29 anos.

Na época, atribuiu-se a morte prematura de Leopoldina a um episódio de violência doméstica que ela teria sofrido quando estava grávida – um chute no abdome desferido por D. Pedro durante uma discussão do casal. É o que a própria Leopoldina confirma, de maneira cifrada, numa das suas últimas cartas, ditada a uma acompanhante. Até que ponto a história trágica de Leopoldina diz respeito à maneira com que as mulheres são tratadas até hoje no Brasil, um país que convive com índices alarmantes de feminicídio e onde até altas autoridades não escondem o machismo e a misoginia?

Bom, sua pergunta já é uma resposta e ela é sim, sim e sim. Claro que o Brasil não é todo igual. O de 1830 era, neste sentido — tratar a mulher como subalterna devia acontecer desde as famílias mais humildes até as mais ricas naquela época. Choca que isso também tenha ocorrido numa corte imperial. O fato é que o machismo é um padrão no Brasil, às vezes melhora, às vezes piora. Quando um presidente da República diz para uma deputada que só não a estupra porque ela é muito feia, o que ele quer dizer é que as bonitas ele estupraria… A deputada em questão nem é feia, o que ele quis foi ofender duplamente. Claro que o presidente citado é um ponto fora da curva. Quando ele fala que teve quatro filhos homens e “fraquejou” ao ter uma menina é um exemplo de um machismo no qual ele nem se preocupou se estava magoando a filha. Deve ser muito confuso para ela. Esse não conta, mas dá para falar do machismo brasileiro em geral. No sentido de que, embora essa prerrogativa de matar em legítima defesa da honra acabou, ainda tem muito homem que se sente confortável ao encoxar uma mulher no ônibus, ainda acha que pode. Tem mulher que reage muito bem. Outro dia uma paciente contou que usava um salto bem alto e, ao ser encostada por um homem, apenas deu um pisão no pé dele com o salto que fez ele sair de perto uivando… Apenas um recadinho, para que ninguém a chame de histérica. Porque agora tem isso: quem denuncia, se ofende ou reage a um assédio é chamada de histérica. A não histérica é a que deixa ser apalpada… Em certa medida, o deputado estadual Fernando Cury (Cidadania), de São Paulo, que apalpou a deputada Isa Penna (PSOL), foi absolvido, não teve consequências maiores, não perdeu o mandato.

É impressionante que, a partir do exemplo da imperatriz Leopoldina, notar que 200 anos depois as coisas não tenham mudado tanto, pelo menos em alguns aspectos…

O que mudou, mais do que a minha geração, é essa nova geração feminista, da minha filha Ana, de 34 anos. Essa jamais vai deixar barato qualquer tipo de desrespeito.

Vou repetir uma pergunta que sempre fazemos para os entrevistados da Agenda Bonifácio: a senhora acha que o Brasil é de fato um país independente?

Não sei se, com a globalização, há países independentes. Acho a globalização até interessante pois faz os países se tornarem dependentes, no sentido de fazer a economia circular mais. Mas o Brasil é independente, no sentido de que “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, aquela frase famosa dos anos 60? Em termos ideológicos, não somos. Não sei em termos econômicos, pois dependemos de países que compram nossas commodities – se eles fecharem a porta para isso, haverá reflexo na nossa economia. Mas ainda somos dependentes em termos de cultura. Temos, por exemplo, um cinema que há muitas décadas é espetacular. Pega um Gabriel Mascaro, um Kleber Mendonça Filho, para ficar nos casos mais recentes, para não citar o Cinema Novo, que seria um saudosismo. Mas que cinemas têm fila na porta? Os que exibem blockbusters americanos. Temos ainda uma inclinação de achar que o que vem de fora é melhor. Às vezes é. O nosso excelente cinema tem menos representantes que o cinema japonês ou francês. Não é uma questão de talento, mas de corte em incentivos. É provável que o nosso cinema fique mais minguado até o fim da atual gestão. O exemplo do cinema é bom porque podemos comparar com outros países. O teatro em São Paulo, graças à lei de fomento, permitiu que vários grupos de teatro despontassem, grandes e pequenos. Vai ser difícil exterminar tudo isso porque muita coisa depende das prefeituras, e não apenas de uma má-gestão federal.

(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)
Publicada em 6 de julho de 2022