Chico da Matilde
Dragão do Mar foi líder jangadeiro e herói abolicionista do Ceará

O movimento abolicionista se consolidou no Brasil na segunda metade do século 19 e a maior parte de seus líderes era composta por intelectuais influentes da elite cultural e política das capitais do país. O cearense Francisco José do Nascimento (1839-1914), no entanto, não tinha esse perfil. Chico da Matilde, como era conhecido antes da fama (depois recebeu o apelido de Dragão do Mar), nasceu em uma família humilde da praia de Canoa Quebrada, distrito de Aracati, onde ganhava a vida como jangadeiro.
Chico aprendeu a ler aos 20 anos. Nessa época, decidiu tentar a sorte em Fortaleza, para trabalhar na construção do porto, e ali ficou. Depois de um período atuando como marinheiro de um navio mercante que fazia a rota Ceará-Maranhão, foi contratado como chefe dos catraieiros (condutores de pequenos botes) do porto de Fortaleza até ser nomeado prático mor na Capitania dos Portos do Ceará, responsável por conduzir, com sua jangada, a entrada de navios até a atracação no porto – entre eles, os de navios negreiros.
Um episódio ocorrido em janeiro de 1881 o marcaria para sempre. Chico apoiou uma greve de jangadeiros que se recusaram a fazer o transporte de escravizados que chegavam em navios negreiros até o porto de Fortaleza, onde seriam embarcados para o sul do país. Como ocupava um cargo de confiança na Capitania, não participou oficialmente do movimento, mas instruiu os revoltosos e ainda deixou suas duas jangadas à disposição dos grevistas.
Nessa época, Chico não era ligado ao movimento abolicionista, que havia sido criado por integrantes da elite cearense em 1879. A repercussão da atitude dos jangadeiros com apoio de Chico da Matilde, porém, o aproximou da luta contra a escravidão. Sob comando de Chico, os jangadeiros passaram a resistir a várias tentativas do governo imperial de demovê-los do bloqueio, que se estendeu por quatro dias.
Em agosto, já engajado na luta abolicionista, o próprio Chico liderou uma segunda paralisação no porto. “Do Ceará não sai mais carne humana”, decretou, numa referência a como o comércio de escravizados era conhecido na época .
A liderança de Chico da Matilde na greve dos jangadeiros foi um acontecimento impactante na sociedade cearense. Era o início da construção de um herói popular que faria Chico ser chamado também de Dragão do Mar. Mesmo porque ele acabaria perdendo o cargo de prático mor, ganhando em troca a fama por ser um pardo e de origem humilde a lutar abertamente pelo fim da escravidão, o que era raro na época.
Chico passou a frequentar os clubes, saraus e outros espaços frequentados pela elite abolicionista. Sua experiência como prático o ajudou a aprender noções de francês e alemão, o que causava boa impressão nesses círculos. Carismático, andava sempre bem-vestido e com barba e cabelos impecáveis. Ganhou ainda mais respeito ao abrigar alguns escravos fugidos em sua casa.
Em janeiro de 1883, Chico participou do movimento emancipador articulado pela Sociedade Cearense Libertadora, que conseguiu alforriar todos os escravizados da Vila de Aracape. O município, renomeado depois como Redenção, ficou conhecido por ser a primeira cidade no país que aboliu a escravidão.
O episódio acabou abrindo caminho para adesão de outras cidades cearenses à alforria de cativos até o governo local se dobrar às pressões e declarar a abolição da escravatura em todo o seu território, em 1884 – o Ceará foi a primeira província brasileira a dar esse passo, quatro anos antes da Lei Áurea.
Nessa época, Chico já era visto como uma referência na luta abolicionista. Tanto que, logo após o anúncio do fim da escravidão no Ceará, líderes abolicionistas locais enviaram o Dragão do Mar e outros jangadeiros da famosa greve de 1881 para o Rio de Janeiro, como forma de divulgar a causa. Embarcaram até uma das jangadas usadas pelo líder na greve, que Chico havia batizado de Liberdade.
Os abolicionistas da Corte receberam o Dragão do Mar e seus companheiros como heróis – eles desfilaram na Rua do Ouvidor sob chuva de pétalas de rosas. Chico foi retratado na capa da famosa Revista Illustrada com uma litogravura assinada pelo artista gráfico italiano Angelo Agostini. Chico da Matilde (apelido que trouxe da infância, numa referência ao nome da mãe) ainda foi recebido pelo imperador Pedro II, a quem doou sua jangada – Liberdade –, entregue ao Museu Nacional. Por pressão dos escravocratas, porém, o diretor do Museu foi demitido e a jangada, recolhida a um depósito da Marinha, onde acabaria desaparecendo.
Após a Lei Áurea, em 1888, Chico da Matilde foi reconduzido ao cargo de prático da Capitania dos Portos do Ceará por determinação de D. Pedro II. No ano seguinte, com a proclamação da República, Chico recebeu a patente de Major-Ajudante de Ordens do Secretário-Geral do Comando Superior da Guarda Nacional do Estado do Ceará, em reconhecimento à sua bravura.
Em 1904, aos 65 anos, o Dragão do Mar voltou a liderar uma rebelião popular, a Revolta dos Catraieiros — movimento de 200 pescadores e chefes de família em reação ao fato de haverem sido sorteados para o serviço militar, tendo que seguir para o sul do país a bordo do navio Maranhão. O edital de convocação havia sido publicado com apenas 72 horas de antecedência do embarque, pegando a todos de surpresa, muitos deles com até dez filhos.
O governo decidiu embarcar os amotinados à força. Os distúrbios deixaram 90 homens feridos e 1 morto, gerando revolta na população. Dragão do Mar liderou então uma marcha até o Palácio da Luz, sede do Executivo estadual, cobrando justiça. O presidente do estado, Pedro Borges, temendo um banho de sangue, recolheu suas tropas.
Chico da Matilde morreu no dia 5 de março de 1914, aos 75 anos. O Dragão do Mar, porém, não teve uma despedida à altura de seu heroísmo em vida. Naquele dia, Fortaleza estava passando por conflitos de rua por conta da revolução política liderada por Padre Cícero e outros homens influentes, que visavam a deposição do então presidente do Ceará, Franco Rabelo.
Em 1999, o símbolo da resistência popular cearense contra a escravidão foi homenageado pelo governo do Ceará, dando seu nome ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), em Fortaleza – um dos maiores complexos do gênero no país, que engloba em seus 30 mil metros quadrados de área atrações como o Museu da Cultura Cearense, o Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Planetário Rubens de Azevedo, Teatro Dragão do Mar, Salas do Cinema do Dragão, Anfiteatro Sérgio Mota, Espaço Rogaciano Leite Filho e a Biblioteca Leonilson, além de auditório, galerias e espaços para exposições itinerantes, podendo receber até quatro mil pessoas. Dragão do Mar também virou nome de escola, de um petroleiro da Petrobrás e da principal praça de Canoa Quebrada.
Em 2017, o nome de Francisco José do Nascimento foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.