Último suspiro da monarquia no poder, Baile da Ilha Fiscal contribuiu para proclamação da república

Foto: Tela de Aurélio Figueiredo
As grandes rupturas institucionais de um país costumam ser precedidas de guerras, golpes ou grandes crises econômicas. No caso do Brasil, esse roteiro foi seguido ao longo do processo que culminou com a queda da monarquia e a proclamação da república, em 1889. Mas chama a atenção um episódio ocorrido no Rio de Janeiro seis dias antes do golpe militar que pôs fim a 67 anos de regime monárquico – o Baile da Ilha Fiscal, uma festa de arromba para 4 mil convidados cercada de luxo e ostentação, que reuniu a nata da Corte e acabaria se transformando no último suspiro da família imperial no poder.
O evento ocorreu na Ilha Fiscal, um posto da guarda alfandegária situado na Baía da Guanabara, em frente do porto do Rio de Janeiro. Nos últimos anos da monarquia, o governo mandou construir ali um palacete luxuoso em estilo neogótico francês, para servir de quartel dos guardas da Alfândega.
Inicialmente marcado para o dia 19 de outubro de 1889, para homenagear a chegada ao Rio de Janeiro de uma importante missão diplomático-militar chilena liderada pelo comandante Constantino Bannen, a bordo do encouraçado Almirante Cochrane, o jantar com parte da comida trazida da Europa e baile animado por seis bandas em diferentes ambientes do palacete teve de ser adiado para 9 de novembro, por causa da morte do rei Luís I, de Portugal (1861-1889), sobrinho de D. Pedro II.
O adiamento ajudou a aumentar a expectativa da elite e alimentar a repercussão na imprensa quanto à grandiosidade do evento. A festança foi tão desproporcional em gastos – só o banquete custou 250 contos de réis, quase 10% do orçamento do ano seguinte previsto para Província do Rio de Janeiro — que muitos historiadores atribuem a queda do regime monárquico ao Baile da Ilha Fiscal.
O fato é que a monarquia brasileira vinha balançando desde 1870, quando o fim da Guerra do Paraguai (1864-1870) e a formação do Partido Republicano, além das campanhas abolicionistas, começaram a pressionar o imperador D. Pedro II.
Os militares, vitoriosos na guerra, exigiam mais participação política e os grandes proprietários rurais, em especial os cafeicultores paulistas — a maioria ligada ao Partido Republicano – não escondiam sua contrariedade com a abolição da escravatura, pela qual não foram indenizados pela perda de escravos. Até a Igreja Católica, que sempre apoiou a monarquia, estava insatisfeita com as interferências de D. Pedro II em assuntos religiosos. Para completar, o governo liderado por Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, presidente do Conselho de Ministros, patinava em meio a denúncias de corrupção, incompetência e perseguição política aos desafetos.
Enquanto isso, a conspiração liderada por políticos e militares republicanos avançava na surdina. Uma das justificativas para a opulência do baile seria justamente uma jogada para fortalecer a posição do Império. Assim, o regime aproveitou o evento para comemorar as bodas de prata da princesa Isabel com o conde D’Eu – e a filha do imperador D. Pedro II, muito admirada por causa da abolição da escravatura no ano anterior, estava sendo preparada para suceder o velho monarca, com saúde debilitada.
Era evidente, enfim, o objetivo de usar a ocasião para legitimar D. Isabel à frente de um futuro terceiro reinado. A ponto de não causar estranheza que D. Pedro II, que passou quase 30 anos sem oferecer eventos suntuosos na Corte, patrocinasse a maior – e mais perdulária — festa da história da monarquia brasileira.
Faltou, no entanto, sensibilidade política diante de tanto desperdício de dinheiro. O exagero já vinha sendo notado antes da festa – a comitiva chilena, que estava no Rio desde outubro, era homenageada seguidamente pela elite, com jantares, passeios turísticos às montanhas, corridas de cavalo e regatas. Com a aproximação do grande dia, o Rio parou. Além da disputa por convites de acesso à Ilha Fiscal nas semanas anteriores, as roupas finas à venda nas lojas da capital se esgotaram com grande antecedência. A três dias do baile já não havia vagas nos cabeleireiros para as mulheres da Corte.
Opulência
Todos os detalhes em torno do Baile da Ilha Fiscal mais parecem roteiro de um livro de Machado de Assis (que, por sinal, narra a festança no famoso capítulo “Terpsícore” do romance Esaú e Jacó). O governo chegou a organizar uma festa para o povo, na praça de frente à Ilha Fiscal, mas sem luxo ou comilança. E tratou de esquecer as divergências políticas, convidando conservadores, liberais e republicanos para o baile.
Vários registros históricos dão conta de um incidente que simbolizou o entorno político por trás da festa. Conta-se que D. Pedro II, ao entrar no salão do baile, tropeçou e caiu, sendo amparado por dois jornalistas. Ao se levantar, sem perder a fleuma, ironizou: “O monarca escorregou, mas a monarquia não caiu!”
Se caiu depois, pelo menos todos se esbaldaram na festa, cuja organização estava impecável. Entre copeiros, trinchadores, cozinheiros e ajudantes foram mobilizados 300 funcionários. Dos cerca de 4 mil presentes (uma boa parte de penetras), apenas cerca de 500 tiveram acesso ao jantar de gala. O menu, em francês, oferecia de faisão a sorvete, uma novidade na Corte. No total, foram servidos 18 pavões, 80 perus, 300 galinhas, 350 frangos, 30 fiambres, 10 mil sanduíches, 18 mil frituras, mil peças de caça, 50 peixes, 100 línguas, 50 maioneses e 25 cabeças de porco recheadas.
Para acompanhar a comilança e entreter os demais convidados, foram oferecidas 12 mil garrafas de vinho, champanhe e outras bebidas; 12 mil sorvetes; a mesma quantidade de taças de ponche e 500 pratos de doces variados.
As bandas militares tocaram quadrilhas, valsas, polcas e mazurcas para os convidados, que dançaram em seis salões do castelo. A princesa Isabel estava entre as que mais bailaram madrugada adentro. Após o fim da festa, por volta das 6h da manhã, a equipe de limpeza teve bastante trabalho. Além de copos quebrados e garrafas espalhadas, foram recolhidas condecorações perdidas e até peças de roupas íntimas femininas. Um relatório de objetos encontrados incluiu 37 lenços, 24 cartolas e chapéus, 8 raminhos de corpete e 3 coletes de senhoras.
A maior parte das informações sobre o Baile da Ilha Fiscal foi descrita no livro Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império, organizado por Jurandir Malerba, Cláudia Heynemann e Maria do Carmo T. Rainho, e publicado pela EdiPUCRS (2014). No total, nove, pesquisadores vasculharam cerca de 850 documentos, entre convites, cardápios, discursos e uma pilha de recortes de jornais, guardados no Arquivo Nacional desde 1930.
Por causa da opulência do Baile na Ilha Fiscal, parece verossímil que seis dias depois, em 15 de novembro, o marechal Deodoro da Fonseca, incentivado por oficiais da força, tenha decidido proclamar a República por meio de um golpe militar. Se a monarquia caiu, pelo menos foi em grande estilo.