Maria Firmina dos Reis, primeira romancista negra do Brasil, ganha papel de destaque na pauta cultural

Reprodução/Wikimedia Commons

Se em 1922 nenhuma escritora integrou o time que mostrou seu trabalho no Theatro Municipal de São Paulo, durante a Semana de Arte Moderna, com o decorrer das décadas o jogo virou. Ao longo de um século, diversos nomes importantes foram surgindo no rol literário brasileiro – Cecília Meireles, Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, Djamila Ribeiro, entre outras – e o lugar que antes era exclusivo de homens brancos se abriu. E este ano, em que se comemora a efeméride modernista e o bicentenário da Independência, chegou a vez de Maria Firmina dos Reis ocupar o papel que merece na pauta nacional: o de destaque. 

A começar pela edição da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), que completa 20 anos e escolheu a autora como homenageada. O evento, que ocorrerá entre os dias 23 e 27 de novembro, uma volta ao presencial depois de dois anos de pandemia, tem a curadoria de Fernanda Bastos, Milena Britto e Pedro Meira Monteiro. A justificativa da escolha pela organização do evento é a de ‘se conectar com pessoas de variadas origens e trajetórias para fazer o Brasil conhecer mais de si mesmo’. Além de ser discutida na FLIP, em outubro, será realizado um ciclo de debates que a terá como tema,  em parceria com o CPF/Sesc.

Monteiro, um dos curadores, disse que o nome de Maria Firmina veio após uma conversa longa, de muitas considerações dos curadores. “Achávamos muito importante, como conselho da FLIP, dentro desse mote de ‘ver o invisível’, de mexer com o cânone. Porque a gente sabe que tem no momento muito forte e potente a emergência nos dois sentidos, de trabalhar com o cânone, mas também de trabalhar com novas vozes, que são invisíveis, com pequenas editoras, uma programação mais plural. Não fiz a matemática, mas me parece que essa vai ser a edição mais negra e mais feminina. Também é a primeira vez que temos mulheres negras no coletivo, como curadoras. Isso também é muito importante, não só simbolicamente, porque efetivamente traz um olhar para o que é invisível, que não está no radar do mainstream”, explica.

E foi aí que a homenageada entrou. “Por ser uma autora menos conhecida, mas a primeira romancista brasileira, negra, educadora, do Maranhão, sempre tentando se afirmar num eixo de consagração, eminentemente branco, masculino, ligado aos centro de poder. Ela sempre navegou pelas margens e tem uma literatura muito potente, que obedece às convenções românticas do século 19, mas tem uma voz importante e personagens que são de escravizados muito notáveis”, completa. Para exemplificar, o curador cita Úrsula, de 1857, que entra na categoria de literatura abolicionista, que retrata as mazelas sociais decorrentes da escravidão.

Maria Firmina, embora tenha feito essa obra potente, ficou fora do radar por muito tempo. Foi redescoberta em 1970, mas nunca contemplada historicamente em livros didáticos. “Não tem fotos dela, mas o que acho bonito é que tem já um exercício de imaginação. Tem um movimento no plano editorial para descrevê-la, e volta e meia você vê alguém desenhando quem teria sido. A a gente achou que aí tinha uma coisa importante nessa personalidade.”

A data de nascimento, também, é uma incógnita. À princípio a ideia era que teria sido em 1822, mas já existem pesquisas que apontam para 1825. “Aparentemente isso é uma coincidência incrível, ela nasce com a independência, cresce com a escravidão, é educadora que pensa numa educação mista, um protofeminismo, quando ainda isso não é uma realidade. É impressionante você ler como é um trabalho de olhar por dentro da sociedade patriarcal, com as convenções do século 19. Meu sonho é que todo menino ou menina na escola ouça falar dela também. Essa torção no cânone é o que a gente queria fazer, uma consagração e uma forma de coloca-a para ser discutida por grandes críticos negros e brancos.” 

A programação, que ainda está sendo composta – restam algumas confirmações a serem feitas -, conta com 17 mesas de debate, as duas inaugurais dedicadas à autora. Uma delas, chamada Minha Liberdade, contará com a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, fala de Maria Firmina e a Independência, e também tem a participação do autor Eduardo de Assis Duarte, de Minas Gerais. Segundo Monteiro, essa e as outras discussões serão em torno da ideia de ‘lembrar o que ficou esquecido e relativizar o que é sistematicamente martelado’. 

MUSEU DO IPIRANGA

A ligação de Maria Firmina e a independência não se restringe ao seu suposto ano de nascimento. Na ocasião da inauguração do novo Museu do Ipiranga, no último dia 7 de setembro, ela foi uma das personagens da história do Brasil homenageadas na performance Relâmpagos Num Dia Claro, concebido e dirigido por Marcelo Ariel. Com o livro Úrsula em punho, a escritora ‘passeou’ por todo prédio histórico, contando sua trajetória e ‘convocando’ para leitura de suas obras. 

Ao lado de nomes como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Glauber Rocha, Pagú, Milton Santos, Lima Barreto, entre outros, a ideia da ação foi mostrar aqueles que sobrevivem na história e ultrapassam a barreira da morte física. “São personagens ícones, anti-fantasmas, que o Brasil não conseguiu matar completamente e permanecem vivas”, explica Ariel. Segundo ele, existem conversas para que a atividade, realizada em parceria com o Sesc Ipiranga, seja feita outras vezes no museu e que vire uma peça itinerante. 

NO MARANHÃO

A escritora não é lembrada só no Rio de Janeiro e em São Paulo. Está em cartaz até novembro, no Museu Desembargador Lauro Barredo Martins, a exposição Maria Firmina dos Reis – 200 Anos Inspirando Humanidades, que comemora o bicentenário da maranhense. A mostra detalha o que se sabe de sua vida, a partir de documentos históricos e objetos que foram seus. Também existem ilustrações digitais que mostram situações importantes da biografia de Maria Firmina. A visitação ao museu é gratuita e o agendamento pode ser feito pelo e-mail museutjma@tjma.jus.br.

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 29 de setembro de 2022

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