Guerra Civil Portuguesa teve D. Pedro I contra o irmão, D. Miguel, na disputa pela Coroa

Foto: Quadro retrata batalha da guerra civil

Ao longo da história, brigas pelo trono sempre geraram guerras fraticidas entre integrantes de casas reais espalhadas pelo mundo. Mas a disputa entre D. Pedro I (1798-1834) e seu irmão, D. Miguel (1802-1866), pelo direito de sucessão em Portugal após a morte do rei D. João VI, em 1826, foge até do padrão de rivalidade pessoal sangrenta normalmente vista quando o que está em jogo nos regimes monárquicos é a Coroa.

Para vencer o irmão oponente, D. Pedro I e D. Miguel patrocinaram uma guerra civil em Portugal que se arrastou por dois anos, entre 1832 e 1834, mobilizando mais de 80 mil homens — entre soldados do Exército fiéis a D. Miguel e voluntários e mercenários contratados por D. Pedro I. Mesmo contando com um contingente dez vezes maior, D. Miguel saiu derrotado.

Quatro anos mais jovem que D. Pedro I, D. Miguel passou boa parte de sua infância e juventude ofuscado pelo irmão quando a família real vivia no Rio de Janeiro. “Havia uma maior proximidade de D. João VI com D. Pedro pelo fato de o filho mais velho estar sendo preparado pelo pai para sucedê-lo”, afirma a historiadora Poliene Soares dos Santos Bicalho, professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG) que abordou a guerra civil portuguesa em D. Pedro de Bragança: entre o império e o reino, sua dissertação de mestrado. 

D. Miguel, por sua vez, era protegido da mãe, D. Carlota Joaquina – segundo rumores da época, pelo fato de D. Miguel não ser filho legítimo de D. João, e sim fruto de um suposto romance de D. Carlota com o marquês de Marialva, diplomata da Corte portuguesa, de quem o filho mais novo tinha semelhanças físicas.

Vários registros históricos atestam que o casal real de fato ficou anos sem manter relações sexuais. Mas uma minuciosa pesquisa da historiadora portuguesa Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, publicada no livro D. Miguel, de 2006, revela que, na época da concepção do filho mais novo, D. João e D. Carlota Joaquina ainda dormiam juntos – o afastamento só teria ocorrido após a chamada Conspiração de Mafra em 1805, que visava retirar D. João VI do cargo de regente. D. Carlota Joaquina foi apontada como uma das líderes do conluio, pois pretendia assumir o poder no lugar do marido.

Durante os 13 anos de convívio com o irmão mais velho no Palácio de São Cristóvão, D. Miguel mostrou-se dono de uma personalidade forte e dominadora, com forte ascendência sobre as irmãs mais novas. Alguns boatos da época afirmavam que o jovem D. Miguel era cruel a ponto de caçar imigrantes chineses como se fossem animais, o que jamais foi confirmado por registros históricos confiáveis.

Sabe-se, porém, que era um católico fervoroso – fruto de sua educação por frades do Convento de Mafra – e que gostava de manter contato na rua com as camadas mais baixas da população, o que explicaria seu sotaque carioca.

A rigor, o contexto político da convivência entre os irmãos no Rio de Janeiro ajuda a explicar as desavenças que os dois desenvolveriam na vida adulta. Desde a chegada da família real ao Brasil, em 1808, as monarquias europeias estavam impactadas pela Revolução Francesa (1789), que contestou o poder absolutista dos reis e disseminou ideias como liberdade e democracia. Conservador, o irmão mais novo nunca apoiou esses conceitos, enquanto D. Pedro I nutria simpatia pelo liberalismo. 

Levantes
Com o retorno da família real portuguesa para Lisboa, em 26 de abril de 1821, D. Miguel passou a desempenhar papel político mais relevante na Corte, comandando levantes militares contra a Constituição de 1822, de inspiração liberal, aprovada na esteira da Revolução do Porto – que forçara o retorno de D. João VI ao país e o obrigara a aceitar a adoção de uma monarquia constitucional, que limitava seus poderes.

Em maio de 1823, D. Miguel liderou a Vilafrancada, que resultou na dissolução das Cortes Constitucionais Portuguesas e no restabelecimento da monarquia absolutista.  Fortalecido, o irmão mais novo de D. Pedro foi nomeado pelo pai comandante do Exército português.

Logo depois, diante da articulação de uma contraofensiva dos liberais para restabelecer a Constituição de 1822, D. Miguel convocou as tropas de todos os quartéis de Lisboa em abril de 1824. Durante o movimento, que ficaria conhecido como Abrilada, D. Miguel mandou prender importantes personalidades civis e militares legalistas nos calabouços do Castelo de São Jorge e da Torre de Belém.

Com o apoio da mãe, D. Carlota Joaquina, tentou consolidar o golpe impondo um cerco ao Palácio da Bemposta, onde estava D. João VI, acompanhado do seu conselheiro inglês, o general William Carr Beresford. Na prática, o rei ficou incomunicável.

“Vários historiadores atribuem o confinamento de D. João VI no palácio a uma estratégia de D. Miguel, que queria passar a impressão de que a Abrilada foi um movimento para restituir ao pai os poderes que ele teria perdido, embora tenha ficado claro que era uma tentativa contrarrevolucionária de restabelecer os ideais absolutistas”, afirma a historiadora Poliene. “Por isso, ele tentou confinar D. João VI, que tinha uma posição mais moderada em relação ao próprio D. Miguel e a D. Carlota Joaquina”, acrescenta.

Com uma crise institucional instalada, coube ao corpo diplomático em Portugal intermediar uma solução para o conflito. O embaixador francês Hyde de Neuville conseguiu entrar no Palácio de Bemposta e convencer D. João VI a chamar o filho para uma conversa. Foi fechado um acordo pelo qual D. Miguel fez regressar as tropas aos quartéis, apesar de manter a maior parte de políticos detidos.

No mês seguinte, os diplomatas ajudaram D. João VI a refugiar-se num navio britânico, de onde o monarca português agiu sem hesitar. D. Miguel foi destituído do comando do Exército. Seus aliados acabaram detidos e os presos políticos, libertados. Para debelar de vez a crise, intimou D. Miguel a bordo e, após recebê-lo, obrigou o filho a embarcar com destino à França na fragata Pérola. O infante foi dali deportado para Viena e D. Carlota Joaquina, confinada no Palácio de Queluz.

Usurpação
Uma nova crise voltaria a eclodir dois anos depois, com a morte de D. João VI, em 1826. O herdeiro do trono português seria D. Pedro I, imperador do Brasil. Ele chegou a adotar o nome de Pedro IV em Portugal, mas os miguelistas alegavam que D. Pedro perdeu o direito à Coroa portuguesa ao declarar a independência do Brasil.

A solução do monarca brasileiro foi abdicar do trono português em favor da filha, D. Maria da Glória (1819-1853). Como a menina tinha 6 anos incompletos, por meio de um acordo familiar ficou decidido que ela se casaria com D. Miguel, que voltaria do exílio como regente após jurar a Constituição de 1826. Em junho de 1828, porém, D. Miguel I decidiu usurpar a coroa de sua sobrinha: numa canetada, demitiu o ministério, dissolveu o Parlamento e convocou as Cortes Constitucionais para deliberar sobre a sucessão do trono.

Apresentando-se como defensor de ideais católicos e tradicionalistas, D. Miguel obteve apoio de parte da nobreza e das camadas mais pobres da população. Conseguiu não só ser coroado rei como foi reconhecido pelos Estados Unidos, pela Espanha e pelo papa. “A forma como usurpou o trono reforça o caráter conservador da sociedade portuguesa, que não estava preparada para aderir aos ideais liberais adotados por outras monarquias europeias”, afirma a historiadora Poliene.  

A crise política no Brasil, que levou D. Pedro I a abdicar do trono brasileiro em favor de D. Pedro II, em 1831, porém, acabaria afetando diretamente D. Miguel. O irmão mais velho decidiu voltar para Portugal para recolocar a filha D. Maria da Glória no trono.  

Além de gastar parte da fortuna que acumulou no Brasil para financiar as despesas de guerra – incluindo o saque de 12 mil libras esterlinas de sua conta no Banco Rothschild–, D. Pedro obteve armas e dinheiro da Grã-Bretanha e Irlanda. Com apoio de parte da elite política, da burguesia e de setores militares, conseguiu reunir voluntários para enfrentar o Exército português que se mantinha leal a D. Miguel.

“Quando teve início, em 1832, a guerra civil portuguesa tinha de um lado os absolutistas apoiando D. Miguel e, do outro, d. Pedro lutando ao lado dos liberais”, diz a professora da Universidade Estadual de Goiás. “D. Pedro comandou pessoalmente as frentes de batalha, o que não havia feito no Brasil”, acrescenta. Sua tropa era composta de 7.500 homens, muitos deles sem treinamento militar, contra mais de 70 mil soldados do Exército miguelista. 

D. Pedro conseguiu tomar o arquipélago dos Açores, de onde lançou ataques navais na costa de Portugal. Tomou a cidade do Porto, que acabou cercada pelas tropas miguelistas. Em outra frente, soldados aliados a D. Pedro conseguiram furar o bloqueio naval da barra do Rio Douro sob proteção da esquadra inglesa. Após desembarcar soldados no Algarve, os rebeldes chegaram a Lisboa, que caiu sem resistência. Na primavera de 1834, a guerra civil portuguesa entraria na sua fase decisiva após uma articulação política internacional por meio da qual Grã-Bretanha, França e Irlanda decidiram pôr fim ao reinado de D. Miguel I em Portugal e às pretensões de Carlos María Isidro de Borbón na Espanha.

Beneficiado, D. Pedro recebeu apoio militar britânico massivo na Batalha de Asseiceira, que levou o Exército português a finalmente depor as armas. O rei D. Miguel I foi forçado a abdicar em favor de D. Maria da Glória (coroada D. Maria II)  através da Convenção de Evoramonte, assinada a 26 de maio de 1834, no dia do 33.º aniversário do monarca usurpador. 

O irmão mais velho não teve tempo de desfrutar a vitória – D. Pedro morreria de tuberculose no mesmo ano. Banido de Portugal, D. Miguel passou o resto da vida no exílio, morrendo na Alemanha em 1866.

(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)

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