Criada por escravizados, capoeira se consolida como símbolo cultural e esportivo e mira Olimpíada

Foto: Capoeira Tradicional

Entre as manifestações culturais criadas ou herdadas pelos escravizados trazidos da África ao longo da história do Brasil, a capoeira conseguiu sobreviver às perseguições aos seus praticantes, desde a época colonial até meados do século 20, período no qual viveu na ilegalidade.

Hoje, a capoeira se consolidou como um símbolo cultural e esportivo genuinamente nacional, com mais de 6 milhões de praticantes só no Brasil e incorporada ao currículo de educação física em várias escolas. Foi reconhecida em julho de 2008 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Brasileiro e, em 2014, pela Unesco (agência da ONU para educação, ciência e cultura) como Patrimônio Imaterial da Humanidade. Além disso, o governo paulista decretou o dia 3 de agosto como o Dia do Capoeirista.

“A capoeira sempre esteve intimamente ligada à historial social, cultural e política do Brasil”, afirma o professor Valdenor Silva dos Santos, de 71 anos, o Mestre Valdenor. Nascido em Mairi, na Bahia, chegou a São Paulo em 1954, e começou a praticar capoeira há 53 anos, com os Mestres José Andrade e Gilóle.

Mestre Valdenor é o exemplo do rápido avanço e consolidação da capoeira no cenário nacional. Formado em Pedagogia pela Universidade São Paulo (USP), Valdenor fez mestrado e atualmente se dedica ao doutorado na mesma universidade. Sua pesquisa acadêmica aborda os benefícios da capoeira em todos os ciclos da educação escolar, desde o ensino infantil até o ensino de jovens e adultos (EJA).

Sua geração ajudou a aprovar a lei que incluiu a capoeira no currículo de educação física das escolas, se mobilizou para criar regras que a transformaram numa competição esportiva de arte marcial e agora está envolvida num objetivo impensável há poucas gerações – a oficialização da capoeira como esporte olímpico.

A belíssima história da capoeira é, acima de tudo, um exemplo vitorioso de resistência da cultura afrodescendente no Brasil. Isso porque a capoeira surgiu na Bahia como uma técnica de defesa que dispensava o uso de armas, ideal para encarar a violência empregada pelos capitães do mato, encarregados de capturar os escravizados em fuga.

Como os senhores do engenho proibiam os cativos de praticar qualquer esporte, os negros criaram golpes a partir de movimentos corporais e, para não chamar a atenção, adicionaram coreografias embaladas por instrumentos musicais (berimbau, atabaque, agogô, pandeiro e ganzá), como se fosse uma simples e exótica dança africana.

A origem do nome é ligada aos campos abertos e sem vegetação, chamados de capoeira, onde os escravizados se reuniam para desenvolver movimentos e treinar.  Como os senhores do engenho levaram um tempo para perceber o verdadeiro potencial da capoeira como arma de defesa, a luta acabou se disseminando com a migração de escravos da Bahia para a Região Sudeste – primeiro para as minas de Ouro Preto, depois para o Rio de Janeiro, para onde a capital da colônia foi transferida, em 1763, e mais tarde para as fazendas de café de São Paulo.

Já conhecida, a prática da capoeira passou a ser duramente reprimida pela sociedade escravista. Na primeira metade do século 19, a acusação de jogar capoeira foi o motivo alegado para detenção de mais da metade (53%) dos negros recolhidos ao Calabouço – prisão no Rio de Janeiro para onde eram levados os escravos submetidos a castigos. Os chamados “capoeiras” normalmente cumpriam a pena máxima, de 300 açoites, e ainda eram obrigados a realizar trabalhos forçados em obras públicas, de acordo com levantamento do historiador Carlos Eugênio Líbano Soares.

Parte da explicação para esse preconceito contra os praticantes se deve ao fato de que o termo “capoeira” também era usado no início do século 19 pelas autoridades para se referir a bandidos e malfeitores, como registrou o escritor Manuel Antônio de Almeida, no livro Memórias de um Sargento de Milícias.

Dois estilos
Curiosamente, a forma de jogar a capoeira incorporou poucas alterações substanciais desde sua criação, no século 16, até os dias de hoje. Atualmente, predominam dois estilos. A Capoeira Angola é a mais antiga, com movimentos que se assemelham a um combate imaginário. Seu nome é uma referência à forma como os portugueses chamavam os escravos que chegavam da África, independentemente do país de origem.

O estilo mais praticado é a Capoeira Regional, criada em Salvador por Manoel dos Reis Machado (1899-1974), o Mestre Bimba, no final da década de 1920, com fortes elementos de artes marciais nos seus movimentos. Mestre Bimba foi o primeiro capoeirista a desenvolver uma luta com regras e método de ensino próprio, criando rituais como o uniforme (branco) e as graduações: o batizado, a formatura e a especialização.

Embora com pouca escolaridade, Mestre Bimba foi um visionário, virando uma lenda entre os praticantes, respeitado até por outros segmentos da sociedade baiana. Em 1937 foi convidado pelo presidente Getúlio Vargas a fazer uma demonstração no Palácio do Catete. Empolgado, o presidente ajudou a tirar a capoeira da ilegalidade.

Outro nome famoso da capital baiana, Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981), o Mestre Pastinha, fundou em 1941 o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), no Largo do Pelourinho, em Salvador. Pastinha e Bimba viraram personagens dos livros de Jorge Amado.

“Existem diferenças entre os dois estilos, no ritual e em nuances do jogo, incluindo movimentos, a forma como se apresentam e o número de instrumentos musicais utilizados”, explica Mestre Valdenor.  

Segundo ele, graças a Mestre Bimba – que, em 1995, em homenagem póstuma, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia–, a capoeira, uma vez discriminalizada, passou a ser trabalhada tambem como desporto além de arte e cultura.

“Ela nasceu como cultura de resistência e assim permaneceu, sofrendo perseguições, como todas as manifestações de cultura africanas e afro-brasileiras, mas felizmente sobreviveu”, afirma Mestre Valdenor. Segundo ele, a capoeira é baseada em quatro pilares: cultura, esporte, educação e inclusão.

Mestre Valdenor indica como os pilares ajudaram a alavancar a capoeira. “Na escola, a modalidade passou a ser incorporada como prática de educação física por determinação da Lei 12.288 (Estatuto da Igualdade Racial), combinado com a Lei 10.639, que define a capoeira como uma luta com expressão cultural afro-brasileira, na qual seria possível observar sua inserção nas aulas”, diz. A partir dessa lei, de 2003, após participar de uma formação continuada, o mestre de capoeira pode ministrar aulas, não no currículo regular, e sim no período estendido (contraturno).

“Mas é importante destacar que a conotação da capoeira na escola não é apenas como uma modalidade de exercício físico” prossegue Mestre Valdenor. “Queremos que a criança, além de aprender como se joga, conheça nossa história, entenda que o Brasil é um país onde o racismo paira sobre a população negra, ou seja, a capoeira deve ser um instrumento de combate ao racismo e à discriminação, contribuindo para a melhoria das relações étnico-raciais”, emenda.

O pilar esporte da capoeira também está em franca ascensão. Foi reconhecida como ginástica brasileira em 1952 e como Desporto de Criação Nacional em 1972. São promovidos torneios estaduais e nacionais desde 1975 e internacionais a partir de 1983, seguindo o estilo da Capoeira Regional.

Como todo esporte competitivo de arte marcial, as regras são definidas. “Os atletas são divididos por sexo, categorias de peso (pena, leve, médio, meio-pesado, pesado e superpesado) e por faixas etárias”, explica Mestre Valdenor. “A luta dura 2 minutos e exige muita técnica – toques e quedas são permitidos, mas o nocaute é proibido, assim como quaisquer movimentos que venham a ferir a integridade física do oponente ”, acrescenta.

Como atleta, Mestre Valdenor foi tricampeão brasileiro individual e por equipe. Treinou mais de uma centena de campeões paulistas, brasileiros e internacionais, ajudando a disseminar a capoeira na América Latina, Europa e Estados Unidos. Com 53 anos de experiência, Mestre Valdenor atuou na Cultura, Esporte, Educação e Inclusão Social. Na atualidade trabalha com a formação de profissionais de Capoeira e de professores(as) da Educação Infantil, Fundamental I, II, Ensino Médio e Ensino Superior.

Segundo ele, a modalidade está em processo de institucionalização. “Embora a Federação Paulista de Capoeira, a primeira do mundo, exista desde 1974 (Valdenor é o atual presidente pela terceira vez), temos a Confederação de Capoeira Desporto Brasil, a CCDB (entidade nacional), a União de Capoeira da América Latina (ULAC), a União de Capoeira Desporto das Américas (UCDA) e a Federação Internacional de Capoeira (FIC), que engloba países de todos os continentes”, diz.

Todas essas entidades estão mobilizadas no Projeto Capoeira que Te Quero Olímpica, iniciado há 12 anos. O objetivo é convencer o Comitê Olímpico Internacional a incluir a capoeira como categoria olímpica, uma vez que já é praticada em mais de 150 países.

Semente na Europa
A disseminação da capoeira mundo afora teve início há mais de 30 anos. E Waldir José da Costa, o Mestre Sorriso, de 68 anos, teve participação fundamental para expandir a prática da capoeira na Europa. Sorriso aprendeu a jogar capoeira aos 8 anos, no Rio de Janeiro. E não parou mais.

Sua primeira experiência no exterior ocorreu em 1987, quando ao lado de outros capoeiristas do Rio de Janeiro – Mestre Garrincha, Mestre Peixinho e Mestre Toni Vargas – organizou uma apresentação na França. O grupo participou do famoso Festival D’Avignon, apresentando-se também em outras cidades francesas e da Europa.

Mestre Sorriso voltou ao Brasil, deu aulas no Liceu Molière, do Rio de Janeiro – que tinha dois filhos de Baden Powell entre os alunos –, e de tempos em tempos viajava para a França. Em 1994, aproveitou que a namorada brasileira da época – com quem depois teria dois filhos — estava estudando em Montpellier e decidiu se mudar de vez.

“Na França, criei a Associação Senzala e passei a dar aulas e a formar alunos em várias cidades francesas e de outros países europeus — Alemanha, Holanda, Áustria, Finlândia e Suíça”, diz Mestre Sorriso.

Na próxima semana, sua Associação Senzala vai dar a corda vermelha – o grau máximo de formação de sua associação – para cinco alunos, entre eles a primeira francesa. “Não atuamos como esporte competitivo, buscamos apenas ensinar capoeira”, diz.

Mestre Valdenor, por sua vez, acredita que o fato de a capoeira ser reconhecida pela ONU e ter data comemorativa ajuda, mas não é suficiente. “A maior contribuição da capoeira é permitir conhecer uma parte da história do Brasil que não está nos livros didáticos; temos heróis e heroínas, mas falta uma reflexão sobre a verdadeira história do nosso país”, diz. “Datas comemorativas são importantes, mas muitos benefícios não chegaram à comunidade, pois a profissão de mestre de capoeira, por exemplo, não é reconhecida e seria importante para valorização do capoeirista como ser social”, finaliza.

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