Comemorações do bicentenário passam longe da festa ufanista dos 150 anos da independência, em 1972

Todo país costuma valorizar as comemorações de suas datas históricas como uma forma de exaltar a unidade nacional. Quando uma efeméride importante cai em datas “redondas” (100 anos, 200 anos e etc), as celebrações costumam ser ainda mais exageradas.
No caso do Brasil, uma curiosidade chama a atenção neste 2022, que marca o 200º aniversário do 7 de setembro de 1822: a agenda de eventos do atual governo federal para celebrar oficialmente o bicentenário da independência tem se mostrado bem mais tímida do que na comemoração do centenário da independência, em 1922, e praticamente invisível se comparada à interminável celebração dos 150 anos do Grito do Ipiranga, em 1972, patrocinada pelo regime militar que governava o país na época.
A festa do centenário, em 1922, foi marcada por três grandes eventos. Um deles não foi organizado pelo governo federal – a realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, no começo de 1922. Os outros dois ocorreram simultaneamente em 7 de setembro. Um deles foi a abertura da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, no Rio de Janeiro. Outro marco foi a primeira transmissão de rádio em solo nacional. Pelas ondas do rádio, os brasileiros puderam ouvir o discurso ufanista do presidente Epitácio Pessoa transmitido simultaneamente à abertura da exposição e, em seguida, a sinfonia O Guarani (1870), de Carlos Gomes, transmitida diretamente do Teatro Municipal do Rio.
As comemorações do chamado Sesquicentenário da Independência, como os militares batizaram a programação de tom ufanista de 1972, por sua vez, se transformaram no maior evento promovido em torno da data até hoje.
O auge foi a vinda dos restos mortais de D. Pedro I, que estavam em Portugal desde sua morte, em 1836. O caixão passou por todas as capitais brasileiras e, em cada escala, foi realizado uma espécie de velório cívico, com parada militar, até chegar a São Paulo no dia 7 de setembro, para ser sepultado na Cripta Imperial, no Monumento da Independência.
O governo chefiado pelo então presidente Emilio Garrastazu Médici (1969-1974) também aproveitou a euforia da conquista do tricampeonato de futebol na Copa do Mundo de 1970, no México, para ajudar a realizar, em 1972, a Taça Independência — torneio que reuniu 20 seleções em 12 cidades brasileiras.
Apesar de ficar conhecido como Minicopa, o evento teve 4 seleções a mais e foi mais longo do que a própria Copa do México. E sobraram problemas: seleções importantes da Europa, como Alemanha Ocidental, Itália, Inglaterra e Espanha, desistiram de participar. O Brasil foi campeão, ganhando de Portugal por 1×0 na final.
O contexto político e econômico do Brasil na época ajuda a entender o exagero nas comemorações do sesquicentenário. Sob Médici, um general linha-dura com repentes populistas, o regime militar atingiu o ápice de expansão do Produto Interno Bruto (PIB), fruto do milagre econômico – como ficou conhecido o período de prosperidade do país, entre 1968 e 1973, que registrou crescimento anual médio de 11,1%, caracterizado pela industrialização, inflação baixa e investimentos pesados em infraestrutura.
Vem dessa época a construção de obras faraônicas, como a Ponte Rio-Niterói, as rodovias Transamazônica (BR-230, de 4 mil km de extensão, que começa na Paraíba e passa por Piauí, Maranhão, Pará e termina no Amazonas) e Perimetral Norte (BR-210, prevista para cortar Amazonas, Pará, Amapá e Roraima, sendo que até hoje foram implementados trechos de 411 km apenas nos últimos dois estados), além da Usina Nuclear de Angra dos Reis, a Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira e a criação da Zona Franca de Manaus.
Outra aposta do regime foi na criação de estatais – foram abertas nada menos que 274 delas, como a Telebrás, Embratel e Infraero –, aproveitando a oferta abundante de crédito no mercado internacional. A classe média aproveitou a maré para financiar a casa própria e comprar carro zero quilômetro.
Crescimento e repressão
Com a economia bombando, os militares usaram as comemorações do sesquicentenário como uma forma de obter respaldo popular em meio ao recrudescimento da repressão do regime.
Em 1972, a imprensa estava sob censura, não havia liberdade partidária nem eleições livres (os governadores eram escolhidos indiretamente) e os militares cassavam e prendiam políticos, artistas e professores universitários, além de perseguir, matar e desaparecer com os corpos de militantes políticos que combatiam a ditadura.
“O Brasil já era conhecido na época como o ‘país do futuro’, mas sob Médici, com o milagre econômico, os militares tentaram passar a ideia de que o futuro havia chegado”, afirma a historiadora Janaína Martins Cordeiro, autora de A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento.
O livro, de 2015, é resultado de sua tese acadêmica desenvolvida entre 2008 e 2012, pela Universidade Federal Fluminense. Mostra como as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno do regime militar, costurado pelo sucesso do milagre econômico.
“A ditadura de fato estava popular naquele ano, o objetivo das festividades do sesquicentenário era o de contar uma história que colocasse a independência econômica do país como um desdobramento da chamada Revolução de 1964”, diz Janaína.
Os militares planejaram com ampla antecedência explorar o evento do sesquicentenário. Em 1967 – cinco anos antes – foi criado, por meio de um decreto, um grupo de trabalho incumbido de estudos preliminares. Mas só foi retomado em janeiro de 1972, com a adesão do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), Conselho Federal de Cultura e Fundação Biblioteca Nacional.
“No início havia uma discussão sobre quem seria o herói brasileiro a ser homenageado no sesquicentenário, se Tiradentes ou D. Pedro I, que acabou sendo o escolhido”, afirma Janaína. Segundo ela, não se sabe quem teve a ideia de trazer os restos mortais do primeiro imperador brasileiro como parte das comemorações. O fato é que o governo português – na época controlado pela ditadura salazarista (1933-1974) – não só autorizou rapidamente a vinda do corpo de D. Pedro I, como participou ativamente da celebração.
Para dar um tom épico ao evento, o caixão com os restos do imperador viajou pela mesma rota marítima percorrida por Pedro Álvares Cabral em 1500, acompanhado pelo então presidente de Portugal, almirante Américo Thomaz, desembarcando na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, em 22 de abril de 1972. No Aterro do Flamengo, foi entregue ao general Médici pelo presidente português, em uma cerimônia acompanhada por cerca de 10 mil pessoas.
Nos cinco meses seguintes, os despojos de D. Pedro I seguiram em peregrinação por todas as capitais brasileiras, recebidos sempre com um roteiro que incluía velório cívico e desfile militar.
Necropolítica
A aparente contradição de o regime militar homenagear com tanta ênfase D. Pedro I – sendo que a derrubada da monarquia e a proclamação da república, em 1889, se deram por meio de um golpe militar – não surpreende a historiadora Joana Monteleone, que em 2014 dirigiu o minidocumentário O Corpo do Imperador, sobre as comemorações do sesquicentenário da independência.
“Além de exaltar os feitos do seu próprio governo, os militares usaram nas comemorações D. Pedro I, o fundador da pátria, para reforçar a ideia antiga de nobreza militar, pois eles sempre estiveram presentes nos grandes momentos do país desde o processo de independência”, diz Joana. “Além disso, diziam ter proclamado a república e fundado o que acreditavam ser uma nova era, em 1964”, acrescenta.
A historiadora também observa que a ideia de organizar um velório cívico nas capitais com os restos do imperador diz muito sobre a necropolítica da ditadura militar. “Enquanto o cadáver de D. Pedro era exposto em atos públicos, o porão do regime desaparecia com os corpos de vários militantes de esquerda”, observa.
O clima de ufanismo na época montado pelos militares facilitou a adesão popular às comemorações – o que levou muita gente a lucrar com a festa. O filme Independência ou Morte, uma superprodução dirigida por Carlos Coimbra e estrelada por Tarcísio Meira no papel de D. Pedro I, lotou os cinemas e ficou ligada aos festejos do sesquicentenário, embora o governo militar não tenha bancado a produção nem a distribuição do longa.
Outro que aproveitou o momento foi o jornalista, radialista e compositor Miguel Gustavo, que havia ficado famoso com a música ufanista Pra Frente Brasil, na Copa de 70, e repetiu o sucesso ao compor o Hino do Sesquicentenário, usado na Minicopa.
As comemorações do sesquicentenário foram finalizadas no dia 7 de setembro com um espetáculo de som e luz ocorrido no Museu do Ipiranga e com a Feira Brasileira de Exportação, a Brasil Export.
O sesquicentenário, porém, não foi marcado só por festas ufanistas. “Houve forte resistência de vários setores da sociedade civil na época”, afirma a historiadora Janaína Martins Cordeiro. Ela cita, entre outros, o lançamento do livro 1822: Dimensões, organizado pelo historiador e professor da USP Carlos Guilherme Mota, que faz uma reflexão crítica do país pós-independência, numa época em que a academia estava infestada de agentes do Serviço Nacional de informações (SNI), vigiando professores e alunos; os artigos do escritor Alceu Amoroso Lima, publicados na imprensa, em que falava de anistia e dos rumos do regime; e os debates políticos promovidos pela ala autêntica do MDB, único partido de oposição legalizado.
“Teve também o lançamento do filme Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade”, diz Janaína. O filme, cujo enredo se passa na época colonial, mostra a repressão da Coroa portuguesa à Inconfidência Mineira como uma metáfora do regime militar vigente em 1972, em contraponto ao filme Independência ou Morte, de Carlos Coimbra.
Novo cenário
Se por um lado o milagre econômico foi fundamental para ajudar os militares a ganhar popularidade e turbinar as comemorações do sesquicentenário, por outro a proliferação de casos de corrupção, os investimentos estatais feitos de forma pouco transparente e o favorecimento a empreiteiras ligadas ao governo – problemas que não eram divulgados na época por causa da censura – foram minando o crescimento da economia.
A situação mudou de vez em 1973, quando uma crise internacional envolvendo os países produtores de petróleo fez o preço do barril quadruplicar em apenas um ano, encarecendo a produção industrial. O Brasil parou de receber empréstimos e passou a pagar juros exorbitantes da dívida externa. Em consequência, houve arrocho salarial, desvalorização cambial, redução do poder aquisitivo da população e aumento da inflação.
Desgastado, o regime militar cairia só em 1985, num cenário de inflação, crise econômica, desemprego e aumento de pobreza – problemas que voltaram com tudo no país recentemente, após o surgimento da pandemia do novo coronavírus. O quadro atual, em contraponto à euforia do milagre econômico de 1972, talvez explique a agenda tímida de comemorações do bicentenário da independência por parte do governo federal.
Por enquanto, o evento mais aguardado é a vinda do coração de D. Pedro I, mantido num vidro em formol na cidade do Porto. “Aparentemente, é a única iniciativa do governo Bolsonaro em retomar o projeto ufanista do sesquicentenário”, afirma a historiadora Joana Monteleone.