Almirante Cochrane, o anti-herói das guerras da independência

Entre os personagens históricos que tiveram atuação relevante no processo que consolidou a separação do Brasil de Portugal, a partir de 1822, o almirante britânico Thomas Cochrane (1775-1860) talvez tenha sido o mais polêmico – a ponto de historiadores discutirem até hoje se o enquadram na categoria de herói ou de anti-herói da independência do Brasil. 

Com uma biografia marcada por aventuras mundo afora, o escocês Cochrane colecionou vitórias militares épicas defendendo, em diferentes situações, as Marinhas britânica, chilena, brasileira e grega. Foi amado e odiado em todos os lugares por onde passou, principalmente por seu apetite em se apoderar dos navios de guerra que venceu em batalhas navais e cobrar, dos governos que o contrataram, a devida premiação em dinheiro por essas conquistas.

Herói das Guerras Napoleônicas (1792-1802) pela Real Marinha Britânica, impondo derrotas humilhantes à França – chegou a receber de Napoleão Bonaparte o apelido de “Lobo do Mar” –, Cochrane ficou tão famoso na Inglaterra que acabou sendo eleito deputado pela Câmara dos Comuns, com um discurso em defesa dos mais pobres e contra os abusos e a corrupção da elite britânica. 

Em 1814, porém, viu seu nome ser envolvido num esquema de fraude na Bolsa de Londres que virou sua vida do avesso. Cochrane foi acusado de ter espalhado um boato de que Napoleão teria sido morto e esquartejado, com o objetivo de ganhar dinheiro no mercado de ações com a repercussão da notícia. Processado por conspiração, foi multado e condenado a um ano de prisão.

“Esse episódio acabou com a carreira militar de Cochrane na Real Marinha Britânica, se isso não tivesse ocorrido, ele certamente seria tão famoso quanto o almirante Nelson (1758-1805)”, assegura o pesquisador George Ermakoff, autor de Lorde Thomas Cochrane: um Guerreiro Escocês a Serviço da Independência do Brasil, de 672 páginas, uma das mais completas biografias sobre o militar britânico, que consumiram quatro anos de investigação por parte do autor.

Como boa parte dos historiadores, Ermakoff acredita que Cochrane foi vítima de uma armação que teria tido participação de um tio, Andrew, que saiu ileso do escândalo. “O establishment militar e político tinha interesse em prejudicá-lo”, afirma Ermakoff. Cochrane perdeu a patente, a mais alta condecoração obtida por suas vitórias militares (Cavalheiro da Ordem do Banho) e ainda foi expulso da Marinha e da Câmara dos Comuns, que cassou seu mandato de deputado. 

Mesmo atrás das grades, foi reeleito para mais um mandato. Cochrane, então, decidiu fugir da cadeia para discursar na Câmara dos Comuns. Acabou capturado no Parlamento e cumpriu o restante da pena – mas desistiu de vez da carreira política.

Precisando se reinventar, em 1817 Cochrane decidiu aceitar um convite de Bernardo O’Higgins, governante supremo do Chile, organizando e liderando a recém-criada Marinha chilena em sua guerra de independência. Obteve uma vitória memorável contra as forças espanholas na captura da cidade-fortaleza de Valdivia. Ele também ajudou a derrotar os colonizadores no então Vice-Reino do Peru.

Cochrane virou um herói inquestionável no Chile, onde viveu alguns anos com a família. Ganhou estátua de bronze em Valparaíso, com praças, avenidas, hotéis e até fragatas da Marinha chilena batizadas com seu nome. Mais recentemente, foi homenageado por Pablo Neruda, num poema em que cita o “errante destino do almirante libertador dos povos”.

O fato é que Cochrane nunca se contentou apenas com os louros – sempre exigiu receber o dinheiro a que tinha direito por suas conquistas. Irritado com a demora do governo chileno de lhe pagar alguns prêmios por vitórias navais, não hesitou em aceitar a oferta de D. Pedro I para liderar a montagem de uma Marinha de guerra no Brasil, que acabara de se separar de Portugal. 

Cochrane desembarcou no Rio de Janeiro em março de 1823, sendo nomeado primeiro almirante – posto criado especialmente para ele. Sua missão era ajudar o imperador Pedro I a consolidar a independência, expulsando a Marinha portuguesa, que bloqueava os portos das principais capitais do Nordeste.

“D. Pedro I assinou um decreto determinando o salário de Cochrane, que além de um determinado valor fixo, recebia um adicional quando estava embarcado”, explica Ermakoff. Segundo ele, o que não estava previsto no decreto, mas era praxe mundial e foi acertado verbalmente com D. Pedro I, era a “parte variável” do salário, referente aos chamados prêmios de guerra, normalmente oferecidos a todos os comandantes do mundo. “Quando um navio inimigo era capturado, deveria ser depois vendido, sendo que o comandante e a tripulação teriam direito a um porcentual”, diz Ermakoff.

Para se ter uma ideia da eficiência de Cochrane, o almirante a serviço de D. Pedro I capturou mais de cem navios ao longo de batalhas travadas contra os portugueses no litoral brasileiro. A primeira delas foi na Bahia. Em vez de atacar a esquadra portuguesa que cercava a capital, decidiu bloqueá-la no porto de Salvador, impedindo que recebesse suprimento e reforços – uma vez que os portugueses também estavam cercados por terra, pelo Exército Imperial.

A estratégia deu certo: em 2 de julho de 1823, um total de 83 navios de guerra e mercantes deixaram às pressas a capital baiana rumo a Portugal. Cochrane foi caçá-los no Atlântico, capturando 16 embarcações e fazendo 2 mil prisioneiros. 

Com a vitória na Bahia, Cochrane se dirigiu para o Maranhão. Sua missão ali era derrubar o governo local, que permanecia fiel a Portugal, e empossar um novo presidente da província. São Luís acabaria sucumbindo ao bloqueio naval do almirante britânico por conta de um blefe: Cochrane mandou avisar as autoridades locais que uma esquadra numerosa estava a caminho. 

No processo de implantação do novo governo maranhense, Cochrane acabou confiscando, como butim de guerra, vários navios e propriedades particulares de portugueses residentes em Portugal, bem como o arsenal inteiro da Marinha local (incluindo 3.000 arrobas de pólvora), além de fundos da Alfândega, autorizado por um decreto de D. Pedro I de 11 de dezembro de 1822. 

Como a independência ainda não estava inteiramente consolidada para o governo imperial, D. Pedro I ignorou o “saque preventivo” de Cochrane em São Luís. Quando ele voltou ao Rio em novembro, o imperador ainda o homenageou com a Ordem do Cruzeiro do Sul e a concessão de um título de nobreza, o de marquês do Maranhão.

No ano seguinte, Cochrane liderou outra missão no Nordeste, agora para esmagar a Confederação do Equador — movimento revolucionário de caráter republicano e separatista que eclodiu no dia 2 de julho em Pernambuco, se alastrando para o Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. O almirante repetiu a estratégia do bloqueio naval, cercando Recife. Após oito dias, sua esquadra bombardeou a capital pernambucana o suficiente para forçar a rendição dos revoltosos, que também acabariam derrotados nas outras províncias. 

Fortalecido com a vitória na Confederação do Equador, Cochrane voltou ao Maranhão para cobrar a dívida que a província ainda tinha com ele. Ameaçou a Junta do Maranhão e conseguiu o ressarcimento de 106 contos de réis, parte do que havia confiscado dos portugueses.

O episódio reforçou a fama de mercenário do almirante britânico— o que, de acordo com Ermakoff, interessava ao governo imperial. “Pela legislação, todo navio capturado deveria ser leiloado, mas como o valor somado de todas as embarcações levadas à adjudicação era astronômico, o Partido Português pressionou o governo a não pagar a comissão de Cochrane e de sua tripulação”, afirma o pesquisador.

Segundo ele, o próprio ministro da Marinha da época, Vilela Barbosa, que era do Partido Português, fez pressão para não pagar Cochrane, de quem era desafeto. “A imperatriz Leopoldina chegou a mandar um recado para ele: ‘Não volte ao Rio porque você será preso ou morto’, e Cochrane acabou deixando o Brasil em 1825 sem receber tudo o que lhe deviam, embora D. Pedro I tenha pago um adiantamento de 200 contos de reis”, diz Ermakoff.

Sua última grande aventura militar foi na Grécia, onde participou da guerra de independência travada contra o Império Otomano. Ao voltar para a Inglaterra, em 1828, Cochrane começou uma nova batalha, para limpar seu nome. Como tinha amigos entre os conselheiros do rei William IV, que o admirava pelos feitos nas Guerras Napoleônicas, obteve o perdão real, o que lhe possibilitou também a reabilitação na Marinha, onde foi reformado como almirante (na ativa, até o escândalo na Bolsa, havia chegado a comandante de navio).

Cochrane ainda recebeu do governo brasileiro os atrasados do salário previsto no decreto de D. Pedro I (incluindo os valores após 1825, referentes à aposentadoria), mas não obteve acordo sobre os prêmios – que só seriam pagos aos seus filhos, e apenas parte do valor cobrado (o equivalente a 4 milhões de libras em valores atuais, cerca de 24 milhões de reais), depois de a família entrar com uma ação na Justiça britânica após a sua morte, em 1860. 

A essa altura, sua fama de herói estava assegurada, pelo menos na Inglaterra. As vitórias navais de Cochrane nas Guerras Napoleônicas inspiraram vários escritores, entre eles Patrick O’Brian, que criou um personagem fictício, o capitão Jack Aubrey, interpretado por Russel Crowe no filme “Mestre dos Mares”, de 2003. 

Sepultado na Abadia de Westminster, ao lado de britânicos ilustres como Isaac Newton, e Charles Darwin, Cochrane ainda não teve o mesmo reconhecimento no Brasil. De acordo com relato do jornalista, pesquisador e escritor Laurentino Gomes no livro 1822, o maranhense José Sarney, quando ainda era presidente da República, foi até Westminster durante uma visita oficial a Londres, pisou na tumba de mármore de Cochrane colada ao chão e próximo ao altar da Abadia e ainda sussurrou um “corsário”, antes de sair.

“Apesar da imagem do Cochrane no Brasil, ele nunca foi corsário ou pirata, pois sempre trabalhou como oficial da Marinha para os governos que o contrataram”, diz o biógrafo Ermakoff, o que talvez explique a fama de herói que Cochrane desfruta até hoje na Inglaterra enquanto, por aqui, não existe sequer um navio da Marinha brasileira batizado com seu nome.