Símbolo da independência do Brasil, quadro de Pedro Américo ficou 3 anos guardado, acumulando pó, antes da fama

Foto: Reprodução

Não há obra de arte que simbolize mais a história do Brasil do que Independência ou Morte, óleo sobre tela do pintor paraibano Pedro Américo (1843-1905), principal atração do Museu Paulista desde a inauguração, em 1895.

A imagem histórica retratada no quadro — D. Pedro com a espada erguida naquele 7 de setembro de 1822, na beira do córrego do Ipiranga, em São Paulo, num gesto épico que marcou oficialmente o rompimento do Brasil com Portugal e o nascimento do novo país – sempre ofuscou detalhes surpreendentes em torno da obra que boa parte dos brasileiros desconhece. 

O mais surpreendente é o longo período para começar a ser exibido para os brasileiros. Foram sete anos de espera, sendo que durante três o quadro ficou esquecido, guardado com a tela enrolada em meio à poeira.

Independência ou Morte foi pintado por Pedro Américo em Florença (Itália), onde vivia, e ficou pronto em 1888 — 66 anos depois do grito do Ipiranga. Por trás da demora de o Brasil ter uma obra definitiva sobre o evento marcante de sua fundação como país se deve a uma disputa que durou décadas entre São Paulo e Rio de Janeiro, sede do Império.

“A data de 7 de setembro como chave para a independência nem sempre foi aceita”, afirma a historiadora Michelli Cristine Scapol Monteiro, pesquisadora do Museu Paulista. “Durante muito tempo, a data em que D. Pedro foi coroado imperador, 12 de outubro de 1822, no Rio, foi considerada a mais importante” acrescenta.

Segundo a pesquisadora, desde 1823, os paulistas fizeram esforço para cravar o 7 de setembro como marco. “Nessa disputa, São Paulo não tinha papel proeminente, ainda não era a potência econômica que viria a ser depois e todas as tentativas de emplacar o 7 de setembro eram barradas na Corte”, afirma Michelli. 

Com isso, o primeiro monumento público do país sobre a independência foi a Estátua Equestre de D. Pedro I, uma escultura de granito e bronze de 6 metros de altura instalada na Praça Tiradentes, no Rio, e inaugurada apenas em 1862. 

Em 1885, os paulistas finalmente conseguiram autorização para erguer um edifício comemorativo ao 7 de setembro – que seria construído para ser um monumento não escultórico, mas arquitetônico. “Pedro Américo, que já havia produzido quadros sobre a Guerra do Paraguai, ficou sabendo que esse prédio no Ipiranga teria várias exposições ligadas à data quando estivesse pronto e propôs pintar uma tela”, revela a pesquisadora.

A ideia de retratar uma imagem épica de D. Pedro no Ipiranga não era nova. Muitos anos antes, em 1844, o artista francês François-René Moreaux, radicado no Rio, já havia pintado a tela A Proclamação da Independência, de grandes proporções (2,44 m x 3,83 m). Feito a pedido do Senado Imperial, o quadro encontra-se hoje no Museu Imperial de Petrópolis.

Para os paulistas, no entanto, o novo quadro seria uma forma de reforçar a importância do 7 de setembro como principal evento do nascimento do novo país. E Pedro Américo era o pintor certo para produzi-lo. O artista paraibano conseguiu ser aprovado muito jovem na Academia Imperial de Belas Artes (Aiba), a instituição artística mais importante do Brasil no século 19. Saiu-se tão bem que ganhou uma bolsa para aperfeiçoar os estudos em Paris. 

A viagem foi inteiramente financiada pelo imperador d. Pedro II, com a condição de que Pedro Américo enviasse seus trabalhos para o Brasil, para comprovar seus avanços no continente europeu. O pintor depois fixaria residência na Itália, onde pintou Independência ou Morte.

Encomendada por D. Pedro II, a gigantesca obra (7m de largura por 4,16m de altura, obviamente maior que o quadro de Moreaux) ainda passou por vários percalços até ser instalada no Museu Paulista. Quando o pintor a trouxe ao Brasil, em meados de 1889, o prédio que hoje abriga o museu não estava pronto.

“Além disso, no final de 1889, houve o golpe militar que derrubou a monarquia e proclamou a República; com isso, o edifício em construção no Ipiranga virou um problema”, afirma a pesquisadora do Museu Paulista. 

Diante do impasse, Pedro Américo, que havia exibido o quadro pela primeira vez numa mostra individual na Itália pouco antes de trazer a obra ao Brasil, tentou levar a tela para uma exposição em Paris, mas não obteve autorização.  Com isso, a tela ficou enrolada e guardada numa sala da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, acumulando pó.

O pintor só conseguiria tirá-la do limbo em 1893, quando Independência ou Morte integrou o pavilhão brasileiro da Exposição Universal, realizada em Chicago (EUA) para celebrar os 400 anos da chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo, em 1492. Um dos principais eventos do século 19, a Exposição Universal foi visitada por mais de 27 milhões de pessoas nos seis meses de duração.

“A instalação do Pavilhão do Brasil atrasou e o quadro de Pedro Américo acabou exposto, mas sem obter grande repercussão, ao lado de outras obras que tiveram até mais destaque, como A Primeira Missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles”, conta a pesquisadora Michelli Monteiro.

Ainda em 1893, as autoridades paulistas decidiram transformar o prédio concebido no Ipiranga para homenagear a monarquia num museu de história natural que também abrigaria pinturas e esculturas. Com isso, a obra de Pedro Américo daria aos paulistas o destaque merecido para o 7 de setembro. 

Como o quadro é bem maior que as portas e janelas do Museu Paulista, a tela jamais foi removida de lá. Diferentemente de outras obras, retiradas durante o período de reforma do museu (que permaneceu fechado de 2013 até 2022), o recente trabalho de restauro do quadro de Pedro Américo – o quarto em 134 anos de existência da obra –, realizado por nove profissionais, foi feito no mesmo local onde foi instalada pela primeira vez, em 1895. O trabalho consistiu em retirar a sujeira acumulada com o tempo, recompondo pontos de perda da camada pictórica original, devolvendo à pintura suas cores da época em que a tela foi produzida.  

A obra, porém, não retrata exatamente a cena em que D. Pedro proclamou a independência. O grito ocorreu num dia em que D. Pedro vinha de Santos, montado num burro (animal mais adequado para a subida da serra), sofrendo com problemas intestinais. O local, ao lado do córrego do Ipiranga, estava tomado pelo mato, sem nenhum glamour, quando um emissário interceptou a comitiva e entregou a D. Pedro uma carta da Imperatriz Leopoldina e de Bonifácio de Andrada, informando das ameaças da Corte de Lisboa para o príncipe deixar o país e ir para Portugal. 

D. Pedro estava cercado de 15 homens da Guarda de Honra, todos com o uniforme sujo de lama. Documentos históricos atestam que D. Pedro deixou claro que era a hora de o país se separar de Portugal. E só. Na obra, Pedro Américo montou um cenário épico, com soldados vestindo uniforme de gala dos Dragões da Independência (destacamento que não existia na época de colônia), montados em cavalos imponentes, em posição de combate. D. Pedro aparece vestido com um traje de gala como se estivesse num baile da Corte, rodeado por dezenas de pessoas, entre soldados, índios e religiosos. 

O exagero do artista, que chegou a visitar o local do grito do Ipiranga antes de pintar a tela, fazia todo sentido – a simbologia da cena em que nascia um novo país era mais relevante que a acuidade do cenário original. Pedro Américo buscou inspiração em outra tela portentosa, 1807, Friedland, pintada pelo artista francês Ernest Meissonier, entre 1861 e 1875, para homenagear Napoleão.

A pesquisadora do Museu Paulista, porém, afirma que é um erro falar em plágio por parte de Pedro Américo. “Naquela época, a academia considerava o fato de um pintor buscar referências em outros quadros como uma prova de erudição do artista, uma mostra que ele conhecia outras obras para transformá-las em outro contexto”, diz a historiadora. Além da tela de Meissonier, Pedro Américo também buscou inspiração em outros artistas franceses e italianos ao pintar a obra.

A carreira do artista jamais obteria a mesma repercussão depois de Independência ou Morte. “Pedro Américo era muito ligado à família real, com a proclamação da República ele teve de se reinventar”, afirma a pesquisadora do Museu Paulista. Além de produzir obras com a temática republicana, como Tiradentes esquartejado, Libertação dos escravosHonra e Pátria e Paz e Concórdia, o pintor migrou para a política, atuando como deputado por Pernambuco no Congresso Constituinte. Durante seu mandato defendeu a criação de museus, galerias e universidades.

Depois, com a saúde debilitada, mudou-se para Florença, onde morreu em 1905, vítima de “cólica de chumbo”, suposta intoxicação pelas tintas que usava. Seu quadro mais famoso, no entanto, seguiu carreira própria. Independência ou Morte ilustrou livros didáticos de diferentes gerações de brasileiros. A tela foi também reproduzida em selo pelos Correios, no verso de uma moeda de 10 centavos, numa cena do filme homônimo de Carlos Coimbra, de 1972 (que tinha o ator Tarcísio Meira no papel de D. Pedro) e até em revistas da Turma da Mônica. 

Em 2022, no ano do Bicentenário da Independência, a obra de arte mais famosa da história do Brasil vai oficialmente entrar na era digital, servindo de cenário de fundo para selfies de visitantes do Museu Paulista.

Veja também
Reprodução
Adriana Varejão expõe na Pinacoteca de São Paulo seu olhar crítico do período colonial
Leia mais
Ítens encontrados durante restauração do Museu do Ipiranga viram peças de acervo
Leia mais
A polêmica em torno do Hino da Independência composto por D. Pedro I
Leia mais