‘Tenho certeza de que quem assumir o Ministério dos Povos Originários tem uma grande missão e apoio de muitos outros indígenas e povos, porque ninguém está só’, afirma a líder indígena, pesquisadora e escritora Márcia Kambeba

A prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) realizada há pouco abordou, em uma das suas questões, a cultura do povo Kambeba. Para tanto, citou a líder indígena, pesquisadora e escritora, Márcia Wayna Kambeba, e sua relação com o aprendizado passado por seus antepassados. “Todos os dias, ela ia com o pai observar o rio. Ia em silêncio e, antes que tomasse para si a palavra, era interrompida. ‘Ouça o rio’, o pai dizia. Depois de cerca de duas horas a ouvir as águas do Solimões, ela mergulhava”, descreveu trecho da pergunta. A ideia era saber a relação do rio com o povoado.
Ela não só postou em sua rede social o trecho da prova, como comemorou o fato da cultura indígena ser abordada. “Fortalece nossa resistência e luta. O texto pode ser meu, escrito por mim, mas a conquista é do coletivo, portanto é nossa. Porque nada é meu, tudo é nosso’. Essa é a filosofia não só dela, mas de toda comunidade indígena. Ninguém funciona sem o outro. Isso se enquadra na natureza, no dia a dia.
Em entrevista exclusiva à Agenda Bonifácio, ela fala sobre o feito mencionado acima, a luta das mulheres indígenas – que aprendeu muito com sua avó nas aldeias – e a responsabilidade que tem aquele que assumir, em breve, o Ministério dos Povos Originários, feito inédito no país. “A demarcação de territórios é uma pauta muito urgente para quem assumir a Pasta, porque a maioria dos garimpos, dos madeireiros ilegais estão dentro de território indígena. (…) Tenho certeza de que quem assumir tem uma grande missão e apoio de muitos outros indígenas e povos. Quando assumimos determinado cargo não estamos só, levamos uma nação.” Confira, a seguir, a entrevista completa:
A poesia que você faz, que se assemelha ao cordel, retrata a violência sofrida pelos povos indígenas desde a chegada dos portugueses aqui. Essa é a sua forma de lutar contra tudo o que ainda sofrem neste país?
Com certeza. A literatura vem com esse fundamento, missão, de ser uma ferramenta de luta e resistência. Porque uma vez que você se torna escritor, não é apenas para lançar um livro ou ter seu nome divulgado em determinado site ou jornal. Quando nos colocamos como escritor, a nossa missão maior é contribuir com a luta dos povos originários, que se dão de várias formas, por várias frentes. Tem aquelas pessoas que estão ali fisicamente no dia a dia dentro e fora da aldeia, como vocês podem ver todas as manifestações que acontecem por todo Brasil. Também os indígenas que estão na COP (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) de corpo presente, e tem aqueles indígenas que lutam de outra forma, usam a linguagem da arte, seja música, literatura, teatro, artes visuais. E tudo isso se une, porque as lutas têm de, em algum momento, se entrelaçar. Não quer dizer que sou uma ativista melhor que outra ou ela melhor que eu. No momento que isso acontecer a gente deixa de ser nação, parente, deixa de vivenciar esse entendimento de igualdade, de inclusão que sinto muito na luta indígena. Quando a gente chega numa aldeia, nós não somos diferentes deles, por mais que meu povo seja o Kambeba. Quando chego no Pataxó sou abraçada por eles, convidada para sentar na mesa e comer junto, é ofertado para mim o que de melhor ele pode ter. É apresentada sua dança, é colocada em aberto as suas memórias e narrativas. É ele dizendo ‘você não está excluído, mas incluído nesse contexto de vida que eu tenho’. Enquanto a gente tiver essa chama acesa desse olhar inclusivo, somos parentes, porque a cooperatividade está presente. Quando mudo o meu olhar, que na minha organização de luta não entra determinado parente, faço a exclusão, já estou me desviando do mundo indígena, que o tempo é circular, e estou vivenciando toda a proposta que a cidade me traz, que é a exclusão, o preconceito, o racismo, que são esses vírus que impregnam a nossa alma. A Covid-19 sabemos o efeito que traz, sente no corpo físico. Mas esses outros vírus, que já vem infectado desde o ventre da mãe, às vezes (a gente) nem se dá conta que está com ele e está repassando para outras pessoas. Me preocupo muito como nós estamos vivenciando o ser indígena na aldeia e na cidade. E a literatura vem trazendo essas reflexões, vem convidando para este pensar crítico reflexivo mudando uma postura de vida, de olhar, de sentir o outro antropológico.
Isso também ajuda a perpetuar a cultura indígena inclusive nas escolas, onde é feito um trabalho importante com seus livros…
Sim. Fico tão feliz quando recebo dos professores, diretores, a notícia que leram, trabalharam Ay Kakyri Tama (Eu Moro na Cidade), de alguém que fez um artigo sobre o livro, um mestrado ou doutorado que foi citado. A gente fica feliz, enaltece o coletivo, é para enaltecer. Não me encher de ego. Pessoas próximas a mim comentaram: ‘parece que você não está feliz que seu nome foi citado no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), seu povo, por uma entrevista que você deu’. Respondo: ‘estou muito feliz, o que querem a mais, que eu saia correndo na rua, não dá para ser assim’. Tenho de ficar feliz, mas ter meu pezinho no chão, entendendo que nada é meu, tudo é nosso. Quero que essa felicidade seja sentida também pela nação indígena. Não é só o Kambeba que está citado ali, mas toda uma nação indígena que ainda territorializa esse solo pindorama que hoje se chama Brasil.
Assim como muitos brasileiros, você lutou muito para concluir seus estudos e para promover sua arte. Qual foi a sensação quando conseguiu publicar o primeiro de alguns livros? E como a arte surgiu na tua vida?
Escrevo desde os 14 anos. Toda a minha narrativa de vida, tanto como pessoa física, espiritual e cultural, perpassa pela minha avó. Ela era poeta e compositora. Também sou poeta e compositora. Então, ela fazia as poesias, compunha as músicas e eu recitava, cantava. Isso na aldeia. Fui vendo, aprendendo, observando como ela fazia, compreendendo o que era uma rima e percebendo que ela não escrevia porque queria ser poeta. Escrevia porque precisava também resistir. Lembro que ela tinha uma musiquinha que dizia ‘sou filha da selva, na selva cresci, trazendo meu arco do povo tupi’. E fazia eu cantar a música, isso me tocava e eu não sabia o porquê. É que por trás da canção tinha uma resistência, sofrimento, de uma história do passado que está muito viva no presente. E fui entendendo o que era rimar, como fazer e com 14 anos comecei a fazer os textos e apresentar para ela. Fui publicar lá aos 30 anos, quando terminei o mestrado. Ela morreu, vendi a casa em que a gente morava e ela deixou de herança. E com o dinheiro publiquei meu primeiro livro. Paguei tudo, desde a parte editorial, impressão, depois doei. Levava nas ruas, nas Academias de Letras, nas universidades e as pessoas foram tomando conhecimento daquele material. Até que, depois de sete anos, uma editora me chamou, na época a Pólen, hoje Jandaíra, com quem publico, e me propôs a segunda edição, que estamos até hoje. A partir daí outros livros vieram, no ano que vem é o sexto título e perdi a conta de antologia, livros onde tenho capítulo, faço prefácio. Fiz o do Quarup, de Antonio Callado, com inúmeras edições, cuja mais recente saiu ano passado, eu e Daniel Munduruku.
Você luta pelo direito das mulheres nas aldeias. O que já conquistou com esse trabalho?
Primeiro o fato de a gente compreender o nosso papel na sociedade indígena. Outra luta que deixou de legado minha avó. Via como ela agia na aldeia relacionado às mulheres. Reunia, conversava e eu estava junto. Por mais que não entendia o que falavam, estava lá assistindo a reunião. O que hoje são as associações indígenas, ela já fazia sem ter essa noção. Conversando com as mulheres, falando da importância de fazer seu artesanato, fazendo com que se organizassem para não serem exploradas, porque havia uma exploração naquela época por um tal Jordão, um regatão que andava pela aldeia onde nasci explorando os indígenas e toda a produção, seja ela econômica, da farinha, da macaxeira, de frutos, além da cultural. Tinha muito isso presente e ela já fazia esse trabalho que faço hoje de mostrar a valorização da cultura para nós. Ela trabalhava como pajé na aldeia, a vi fazendo curas. Conversava com as mulheres que faziam remédios caseiros, que rezavam, benziam, estava trabalhando outras curandeiras, benzedeiras. Era um trabalho de valorizar o território do sagrado que existe em nós. Tinha uma potência de voz atuante. Hoje ando nas aldeias dando aula ou palestra, ou fazendo oficinas, e trabalhando isso com minhas parentas, fortalecendo nelas esse feminino de não querer ser melhor que os homens, mas também não pior que eles. A gente luta junto, lado a lado. Quando tem a reunião dos homens não posso estar ali no meio, interferindo. Mas há interferência indireta. Quando eles se reúnem na casa de reza deles, em tomadas de decisões, voltam para almoçar em casa e pedem opinião das esposas. Mesmo pela voz deles, chegam as opiniões delas dentro das reuniões, é uma participação indireta. Estava dando aula em uma determinada aldeia aqui no Pará onde só tinham duas mulheres. E quando elas queriam falar, passavam para os homens e eles falavam para mim. Suportei isso dois, três dias. Quando estava com uma intimidade maior com eles disse que não queria mais isso, ‘elas sabem falar’. Bastou um despertar para elas virarem tagarelas (risos). Elas começam a chegar, a ter a oportunidade de se desprender dessa timidez. E aos poucos você vai conversando e vai compreendendo onde pode ou não mexer. Não posso chegar em uma aldeia e achar que num estalar de dedos vou mudar o mundo. Por isso vamos para sala de aula do não-indígena, que é a universidade, compreendemos o universo para poder aplicar lá de uma maneira certa. Tenho de respeitar e saber onde pisar para não machucar. Meu sexto livro vai ser só sobre mulheres indígenas.
Uma das principais discussões atuais é a urgência em preservar as florestas, principalmente a Amazônia. Existe um projeto de iniciativa popular, o Amazônia de Pé, que trabalha neste sentido de preservação, de entregar a quem cuida, de fato. Qual o papel do povo indígena nesse trabalho?
Essa luta dos indígenas em prol da questão climática, nem só da natureza, ela vem de muito tempo. Para se ter uma ideia, quando vamos pensar em rotação de cultura – posso falar isso porque sou geógrafa, com especialização em educação ambiental -, nossos antepassados já faziam isso. Sabiam que se eles plantassem macaxeira, não podiam repetir isso por muitas vezes porque o solo ia exaurir. Mudaram de cultura, deixavam o solo em descanso. Iam para outro local. Eram nômades, muitas vezes, por isso, para deixar o solo descansar. Eles iam para outro canto, mas não perdiam a referência daquele lugar. Quando já tinha passado o tempo suficiente, faziam o caminho de volta e quando chegavam tudo havia se renovado. Essa sabedoria, mais tarde, observada pelos pesquisadores que por essas regiões andaram, é o que deu origem ao que chamamos de rotação de cultura. Os primeiros ecologistas depois de Francisco de Assis (considerado Patrono da Ecologia) são os indígenas. A forma como trabalham o solo, as técnicas que usavam para plantação, construção de casas, a forma como usavam para fazer ilhas. A nominação que eles davam para determinados lugares, o conhecimento que tinham do clima, a geograficidade dos rios, o conhecimento das matas, tudo isso foi repassado para os cronistas. Quando a gente vai pensar na questão climática hoje, teria de fazer uma imersão com a população indígena para compreender o processo e entender que a relação que temos com a natureza é de cooperatividade, intrínseca de pertencimento. Não é à toa que tudo para nós tem espírito, planta, formiga, uma população microbiana tem a função dela no ecossistema. Por isso que a gente fala de que quando a última árvore tombar no planeta estaremos extintos, porque o efeito climático que estamos vivendo é resultado de um profundo desmatamento que não começou no governo do Bolsonaro, vem de muito atrás, com a extração do Pau Brasil. Chega governo e sai governo e a gente não vê uma melhora, porque na cabeça de uma população não-indígena temos de explorar para crescer. A sociedade ‘precisa andar para frente’ e isso é cortar madeira, explorar, poluir o rio, matança de animais, vender pele. Na verdade não. Estamos regredindo nesse processo, porque cada animal tem sua função no planeta e não estamos vendo por esse lado. O cifrão vem sempre antes.
Pela primeira vez na história do país teremos um Ministério dedicado aos povos indígenas. Quais são as ações necessárias a serem feitas pelo representante desta Pasta neste momento?
Penso que são muitas causas urgentes. Temos a saúde, educação, o pensar a saúde da mulher indígena, que tem suas especificidades. A questão da vivência dos povos em contexto urbano, na educação como podemos contribuir com a sociedade não-indígena trazendo os saberes para dentro da sala de aula. A coisa mais urgente no momento para quem assumir é pensar a demarcação de terra. Tem tudo isso que falei, mas a demarcação de territórios é uma pauta muito urgente para quem assumir, porque a maioria dos garimpos, dos madeireiros ilegais estão dentro de território indígena. Na Amazônia temos corredores que servem de tráfico humano. Como trabalhar essa questão? Gisele Gonçalves, não por ser minha prima e afilhada, mas por ser Kambeba, há seis anos foi sequestrada. Para onde levaram essa menina de 21 anos na época? Será que está viva? A família não sabe mais onde procurar. Acionamos até recursos internacionais e não encontramos. Quantas Giseles são levadas todo dia nesse corredor da Amazônia? Porque o Alto Solimões consideramos como uma Amazônia dos esquecidos, dentro da grande tem várias. Uma vez escrevi um texto A Amazônia dos Esquecidos, que somos nós do Alto Solimões, porque tudo que acontece lá pouco é divulgado no mundo. Ninguém está procurando Gisele Kambeba, ninguém se importa. Com esse ministério temos de chegar mais nas aldeias. Ir naquela que ninguém foi ainda. Como chegar, saber como está o parente, quais são as políticas públicas que podem ajudar? Sou professora, tenho alunos que deixaram de estudar porque na aldeia deles não tinha energia. Portanto, não tinha como fazer a tarefa e acompanhar a turma, então eles desistiram. Tem muita situação a ser pensada e tenho certeza de quem assumir o Ministério tem uma grande missão e apoio de muitos outros indígenas e povos, porque ninguém está só. Quando assumimos determinado cargo não estamos só, levamos uma nação.
Tem um palpite de quem seja?
Não tenho, depende da cabeça do Lula. O que posso dizer é que aquele que assumir terá de ser abraçado por todos nós, neste sentimento de coletividade. Independente de ser Joenia (Wapichana), Eloy (Terena) ou Sônia Guajajara, vai ter de ser abraçado, porque é a primeira vez que isso acontece na história do Brasil, então não dá para dividir. Somos tão pouquinhos que se dividir, a gente se destrói. O certo é fazer como aconteceu há muito tempo atrás: os kambeba eram inimigos de morte do povo ticuna. Mas em dado momento da história tiveram de unir as flechas para poder resistir ao processo dizimatório.
Você acha que o Brasil é, de fato, um país independente?
Vou responder essa tua pergunta com um poema que fiz sobre esse tema chamado Independência: Não temos o que comemorar neste dia 7 de setembro/ Independência para quem? Quando nos tiram o direito de viver, quando estupram nossas parentas e seus corpos são jogados para o rio receber/Independência de quê?/Nossos territórios invadidos, nossos rios poluídos/Se beber mercúrio vai morrer, mas a água é necessária/A aldeia precisa sobreviver/O branco trouxe doença, violência, desamor/E no grito de independência faltou respeito e consciência pela natureza que nos abraçou/O grito de independência não nos contemplou, antes disso muito sangue foi derramado/Depois disso ainda continuou a ser derramado e se arrasta até os dias atuais/Mas a resistência não tem fim, ela se fortalece nas pequenas e grandes coisas/Porque precisamos lutar pelo amanhã do curumim/E garantir a continuidade de nossa memória, história, legado. Essa é a resposta que tenho para sua pergunta. Mais um crime que não foi noticiado nos jornais, que talvez fique na impunidade, aconteceu recentemente, dia 11, (lê uma reportagem) ‘quando um grupo de indígenas foi atacado na cidade de Boa Vista, Roraima. E uma mulher indígena, identificada como Ana Yanomami Xexana foi morta a tiros. Além dela, outra vítima foi atingida. Segundo a polícia militar duas pessoas em uma bicicleta efetuaram os disparos. A segunda vítima foi encaminhada para o pronto socorro Francisco Elesbão e não corre risco de morte. Ana tinha um filho bebê e juntamente com outros indígenas se preparava para retornar para sua comunidade no sábado, dia 12.’ Nessa violência que ceifou a vida dela ninguém foi preso. Não deu matéria de jornal, portanto ninguém sabe o mandante do crime e ela é mais uma vítima dessa independência.
(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)
Publicada em 23 de novembro de 2022