‘Seria interessante aproveitar o ensejo dessa efeméride para pensarmos como chegamos até aqui’, afirma o professor e historiador Jurandir Malerba

Refletir o passado para entender o presente e projetar o futuro. Um mergulho à fundo na história do Brasil é muito importante para nos ajudar a entender o desenrolar desse trajeto que já dura mais de cinco séculos, os dois últimos de forma independente. De uma forma divertida e didática, o Almanaque do Brasil nos Tempos da Independência, escrito pelo professor e historiador Jurandir Malerba, e publicado recentemente pela Editora Ática, cumpre bem esse papel, inclusive por relacionar situações e contextos históricos que refletem ainda hoje – e que podem ser mudados mais para frente.
Em conversa com a Agenda Bonifácio, o professor explicou a razão da escolha do formato – ideal para atingir o público mais jovem, que inclusive pode usá-lo como objeto de estudo para os próximos vestibulares. Também falou de que maneira a publicação reflete ‘os tempos da independência’ com informações que vão para além do que já foi contado nos livros. “Os impasses que temos hoje tem uma história que está incrustada na trajetória da nação. Esse formato do almanaque que não é linear, mas é cronológico, coloca algumas datas não aleatórias que permitem levantar questões. Tem algumas de fundo que perpassam todo livro e nos atingem hoje também. Desde os povos originários, da relação da sociedade brasileira com os indígenas, que como diz Ailton Krenak é uma história de cinco séculos de guerra e que não acabou.” Confira, a seguir, a entrevista completa:
Você lançou há pouco o Almanaque do Brasil nos Tempos da Independência. Como surgiu a ideia da publicação e em fazê-la neste formato?
O projeto surgiu um pouco no contexto das efemérides. Em 2020, por acaso, estive em contato com a Editora Ática para outra finalidade e conversando com o editor mencionei sobre isso. Ele dizia do interesse em ter um projeto para o bicentenário da independência e falei que tinha umas cartas na manga. Sempre fui fã de almanaque, na minha infância, juventude. Sessentões viveram muito lendo o almanaque. Estava estudando para uma outra finalidade esse formato e eu sabia desse potencial. Tinha dois projetos para o bicentenário: não queria fazer nada acadêmico, pesquisa de ponta, nada disso. Inclusive pelo contexto que a gente está, com muita disseminação de mentiras, que tem o nome bonitinho de fake news, mas pensei como sair do conforto dos muros da academia e buscar um público mais amplo. Então pensei em dois projetos, um livro mais robusto para público leitor que lê em geral, cada vez mais diminuto no Brasil, mas que gosta de tudo, inclusive história, que é o Brasil em Projetos, que saiu pela Fundação Getúlio Vargas em 2020, com prefácio do Lira Neto. E, o segundo, para o público mais importante na minha opinião, o juvenil, escolar, pessoal do Ensino Médio. Pensei para esse projeto o almanaque, porque tem uma plasticidade enorme. É um tipo de escrita não-linear, então ela tem um pouco de similaridade digital, o hiperlink. Você está falando de uma coisa, abre uma janela, fala de outra. Que é um tipo de formato que está no cérebro do pessoal mais novo. E abre a possibilidade de usar mil recursos – você pode colocar um poema, jogo de adivinhação. Não usei todos eles, mas tem muita imagem de época, ilustrações das estampas, aquarelas, gravuras, do Taunay, Debret, Rugendas, Julião, centenas de pintores de época e é ilustrado também. São dois aspectos: elemento lúdico atrativo para esse tipo de leitor e, por outro, a possibilidade de inserir questões para além do ‘fato histórico’ das comemorações, do fato político em si. Fazer um almanaque não da independência, mas dos tempos da independência, que começam lá em 1822, mas também antes, na colonização. Outras questões que a própria independência colocou na pauta do dia e não resolveu, que estão em aberto até hoje.
Situações descritas no livro tem bastante relação com fatos que acontecem hoje, inclusive. Essa é uma forma de mostrar também que a história não é só aquela que nos vendem, que existem outros personagens, outros heróis que participaram da independência e que, por muitas vezes, não entraram na literatura?
Não gosto de trabalhar essa ideia dos heróis, então a gente tinha um panteão. Depois do 7 de setembro a elite que promoveu a independência e criou o estado nacional brasileiro fez isso na época da construção dos estados nacionais, como estava acontecendo na Europa, etc. E um aspecto fundamental da invenção de uma identidade nacional foi justamente selecionar fatos marcantes, divisores de água, fundacionais, e um panteão de heróis, homens, brancos e europeus. Bonifácio patriarca, Dom João, por aí afora. Dona Leopoldina entrou depois. Hoje em dia tem um movimento no sentido de substituir esse panteão por outro. Preferi pensar mais na questão de não fazer um almanaque da independência, mas pensar nos tempos que ela ocorreu. A nação está fazendo 200 anos, é a coisa de termos a independência não como um fato para comemorar só. Até tudo bem ‘co-memorar’, lembrar juntos, não para celebrar, festejar. Seria o momento para a gente pensar nessa trajetória, esses 200 anos. Como a gente chegou aqui? Sabemos que estamos vivendo impasses atrozes, a iminência de uma eleição decisiva, voltando para o mapa da fome, racismo estrutural, xenofobia, misoginia, machismo. Seria interessante aproveitar o ensejo dessa efeméride para pensarmos como chegamos até aqui. É isso que passo um pouco, não pensar o acontecimento histórico como um dado fixo que está no passado, que é um pouco o que o governo federal está fazendo, usar isso de forma patrioteira, como a ditadura militar fez, mas parar para pensar, os impasses que temos hoje tem uma história que está incrustada na trajetória da nação. Esse formato do almanaque que não é linear, mas é cronológico, coloca algumas datas não aleatórias que permitem levantar questões. Tem algumas de fundo que perpassam todo livro e nos atingem hoje também. Desde os povos originários, da relação da sociedade brasileira com os indígenas, que como diz Ailton Krenak é uma história de cinco séculos de guerra e que não acabou. Estava lá na época de Dom João, ele decretou extermínio contra os Kaingang do Vale do Rio Doce e isso chega até hoje se a gente for pensar o que está acontecendo na Amazônia com a invasão dos garimpeiros, grileiros, madeireiros. Esses caras estão matando as populações indígenas. Outra questão estruturante do livro, falo de escravidão, números do tráfico e como isso se deu ao longo do século 19 – tivemos a independência e a escravidão não foi resolvida. Foi apenas do modo que satisfazia as elites brancas proprietárias traficantes incluídas no agronegócio, que antigamente se chamava plantation. A coisa de commodities voltada para o mercado externo, essa é a lógica do agronegócio no Brasil. Daí pensei na questão da escravidão, tráfico, e como isso se desenrola ao longo do século 19. Só em 1850 se interrompeu o tráfico, e a escravidão em si só e 1889, quase chegando ao século 20. E o impacto disso no pós abolição. Como a questão dos pobres trabalhadores se tornou questão de polícia, militarização das polícias, e o que a gente vê hoje na brutalidade que ainda se dirige contra as populações pobres que são majoritariamente pretas e pardas. Essas coisas atravessam o livro. Mas não só, tanto quanto indígenas quanto a população afrodescendente é feita de opressão, mas também de resistência. É interessante a gente notar que hoje temos mais de 300 etnias ameríndias no território americano, do que entendemos por Brasil. Assim como as populações negras estão buscando seu protagonismo na sociedade. E aí a contribuição desses povos da nossa formação, da nossa alma.
E que ajudaram a formar a cultura que de fato é que faz a nação se tornar independente…
Não é à toa que estão querendo matar a cultura, porque ela lembra que somos todos estes, não apenas os brancos melancólicos. Outro dado importante, assunto que estrutura o livro, é a questão da formação da família patriarcal no Brasil. Essa forma de exploração colonial já o Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e todo mundo da metade do século 20 colocou muita ênfase nessa formação: o senhor, homem, macho, branco, proprietário mandava prender e soltar. Essa força do privado na estruturação da sociedade. Estavam submetidos a ele como menores, alheios à maioridade jurídica, o entorno todo. As mulheres até hoje estão lutando e se for trazer continuam na questão da terceira jornada, salários mais baixos, a questão do feminicídio, machismo, muito arraigada entre nós que vem dessa formação patriarcal que assegurava o senhor do século 19 o direito de vida e morte com seus dependentes, os filhos, escravizados e mulheres. Ele podia punir até com a pena de morte se entendesse que fosse o caso. E isso é muito presente na sociedade brasileira. Questão do patrimônio também está ali e o almanaque me permitiu navegar por esses assuntos e também no tempo, como eles foram tratados, além das comemorações, lembranças.
Você me falando isso me fez lembrar aquela música do Cazuza, que dizia que o ‘Brasil é um museu de grandes novidades’. Você concorda?
É, a gente vê muito eloquente que basicamente tudo que se faz hoje em torno das efemérides do bicentenário foge da esfera Estado, do ente da federação. O legislativo, a Câmara dos Deputados, fez um evento em Brasília muito chapa branca, restrito, de viés monarquista. O senado fez algumas coisas também e o executivo não fez nada. A gente entende que ele não quer fazer esse balanço de trajetória, como chegou nessa situação de desigualdade social. Problema de concentração absurda de renda onde seis famílias, seis caras, detém o equivalente a 100 milhões de brasileiros mais pobres, praticamente a metade da população. É uma concentração absurda. Voltamos para o mapa da fome, o governo não quer fazer balanços de trajetória. Isso é muito ruim, porque resgata essas narrativas do século 19, que o Brasil é uma coisa maravilhosa, de que estamos em equilíbrio, existe um ‘nós’ brasileiros, que não existe cisão, que somos europeus, brancos e que apesar da existência de brancos e negros somos um país do futuro. Nunca a gente acontece no presente, porque ignoramos essas questões fundamentais. A narrativa da Secom evoca a bandeira do império, a ordem de Cristo, os emblemas da monarquia, Dom Pedro resgatado como herói. Teve a questão em torno do coração, assim como aconteceu no sesquicentenário, que trouxeram os restos mortais dele. E o pau torando nos porões da ditadura. Hoje não têm nem criatividade. Meu livro vai um pouco na contramão dessas versões todas para trazer questões e pensar os desafios que temos como sociedade, sobretudo os jovens.
Como você citou, muitos problemas que vemos hoje vêm há mais de dois séculos. Houve algum avanço no Brasil?
Seria desonesto dizer que não, mas é sempre aquela coisa, um passo para frente, dois para trás. Vivemos essa permanente ameaça de rompimento institucional, de regresso, de um autoritarismo crônico que perpassa a sociedade, essa tutela militar sobre o Brasil que nos acompanha desde a época republicana. É claro que conseguimos avanço sobretudo a partir da Constituição Cidadã de 1988, uma nação jovem em construção, tínhamos avançado passos largos no sentido da democratização, distribuição de renda, inclusão social, expansão das universidades. Em tão pouco tempo, desde o golpe de 2016, o regresso, de um projeto mais popular, inclusive, para um projeto mais restritivo, que concentrou mais a renda, acabou com as políticas sociais, seguridade, trabalhistas e o povo ficando cada vez mais exposto e largado porque o estado pegou a lógica neoliberal do ‘faça você mesmo’, na verdade, uma maquiagem para disfarçar a supressão de direito dos trabalhadores. Sem pensar que as pessoas partem de lugares diferentes. Hoje, 70% dessa população que está em condição de vulnerabilidade alimentar, 80% é preta ou parda. Como um jovem negro da periferia vai se reinventar em um mundo digital? É muito cruel esse tipo de discurso, inclusive sendo reverberado nos órgãos oficiais. A questão da terra, como se deu, desde os tempos coloniais, a questão da concentração, e Darcy Ribeiro falava isso, como uma minoria de gente branca conseguiu causar tanto mal para tanta gente. Hoje ainda vemos que um dos problemas crônicos que temos, o aquecimento global, que se dá pelas queimadas e, no Brasil, 90% da área desmatada é do agronegócio. É derrubar floresta para fazer pasto e plantar soja. E aí somos o segundo maior país do mundo produtor de grãos e temos 33 milhões de pessoas passando fome. Para onde estão indo esses grãos? Essa independência foi feita para quem, quem está se beneficiando dela? São questões colocadas no livro.
E o verde-amarelo, o uso da bandeira do Brasil por uma fatia política. Acha que é possível o brasileiro recobrar o gosto pela sua bandeira e ter orgulho dela?
É possível, mas vai demorar. Isso vai ficar marcado por muito tempo, essa apreensão dos símbolos nacionais por um setor minoritário, mas altamente protofascista. Começou pela apropriação da camisa da seleção brasileira e hoje é usada, inclusive, na campanha eleitoral do governo à reeleição. É uma oportunidade interessante de a gente pensar quais são as cores dos Habsburgo. Por que temos as cores do império austro-húngaro na nossa bandeira. Quando pequenos falávamos que o verde era das matas, o amarelo do ouro, nem isso não serve mais porque as matas foram derrubadas, o ouro foi explorado à exaustão. Mas não é isso, se mantiveram as cores da bandeira do império. Podemos pensar em outras cores. Difícil mudar esses bastiões da identidade nacional. As pessoas estão questionando hinos machistas, racistas, aqui no Rio Grande do Sul inclusive. Por que não rever essas coisas também? Uma coisa de plebiscito talvez. Esses símbolos eram de todos, mas esse ‘todos’ não é um só. É plural, diverso e a gente tem de reconhecer essa pluralidade na íntegra.
O Brasil é de fato independente?
Não há dúvida que houve uma independência política em 1822. O Brasil se defendeu de Portugal, vivia uma situação colonial, teve um processo lá narrado de uma maneira, falavam que foi pacífico, falavam em desquite amigável, povo ordeiro, e hoje se estuda as guerras de independência, tanto no Brasil quanto na América Hispânica. Não nas mesmas proporções que lá, mas aqui houve guerra do mesmo modo. O Brasil foi reconhecido como corpo político autônomo, que mudou muito a trajetória da nação. Mas a nação que nascia ali herda não só as questões estruturais, fonte da geração de riqueza na mão de poucos. Durante 60 anos continuamos sendo governados pelos Bragança, então a gente ficou com uma monarquia. Por que as elites optaram pela monarquia? Precisa ser centralizado, senão acontece como na América Hispânica (que se dividiu). E a fonte do poder dessas elites ia evaporar e eles queriam a monarquia, colocaram o príncipe como protagonista, era a tábua de salvação. A primeira metade do século 19 foi um processo de guerras sangrentas no Brasil, que pegou fogo. As pessoas falam de independência, ou independência incompleta, são todos termos de fantasia, criados para uma perspectiva específica do processo. Houve o corpo político autônomo, mas se manteve muita coisa do período colonial que ecoa até hoje caramente para nós.
(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)
Publicada em 13 de outubro de 2022