‘São estes homens complexos que fazem a grande história e este é o caso de José Bonifácio’, diz sua biógrafa, a historiadora Mary Del Priore

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Mocinho ou vilão? Nem um nem outro. Como todo ser humano, José Bonifácio de Andrada e Silva, nomeado Patrono da Independência, é um personagem controverso. Esta é a afirmação de sua biógrafa, a historiadora Mary Del Priore, que descreve em seu livro, As Vidas de José Bonifácio, todas as constatações que teve ao estudar a trajetória deste personagem peculiar. Na publicação, além de desmistificar a ideia de que ele era o intelectual da colônia, baseada em pesquisas feitas na Europa, inclusive em locais onde ele teria estudado, a escritora mostra que ele era extremamente ambicioso e que encontrou, no seu retorno ao Brasil após de três décadas na Europa, a chance de entrar para a história.

Em conversa com a Agenda Bonifácio, Mary ajuda a construir essa personalidade com todos os seus meandros. “É difícil pensar num José Bonifácio que seja só herói, que seja amiguinho de Dom Pedro, Leopoldina, não foi bem assim. É um homem perpassado por essas ambiguidades todas, extremamente ambicioso, a gente vê isso acompanhando a correspondência dele publicada. O importante não é exagerar nos louvores a ele, mas sim mostrar que são esses homens complexos que fazem a grande história, e é o caso dele. Um homem extremamente complexo.” Confira, a seguir, a entrevista completa:

O bicentenário da Independência do país será completado em setembro. E um dos grandes nomes desse movimento no Brasil foi José Bonifácio, depois chamado de Patriarca da Independência e seu biografado. De maneira geral, como você classificaria o papel desse personagem na história do País?

Um personagem extremamente controverso. Agora, gradativamente, os estudos começam a aparecer. Recentemente li um artigo que vai ser publicado na revista do Arquivo Nacional mostrando como a família de José Bonifácio, em Santos, já tinha interesses aqui no Rio de Janeiro. Queriam dirigir sozinhos, em monopólio, o tráfego da via marítima entre Santos e Rio (a chamada cabotagem, termo usado para classificar a navegação próxima à costa com carga variada). É importante ter isso como pano de fundo porque o que procurei fazer no meu livro foi justamente resgatar as contradições em que ele viveu, sobretudo antes dele vir para o Rio. É um homem que viveu as contradições do Novo e Velho Mundo. Sai de Santos, que era uma cidade pequena, dona de um pequeno porto, com trânsito de mercadorias, que ia para o alto de São Paulo, planalto. Ele vai falar de liberdade, escravidão, mas é sempre bom lembrar que viveu no meio de pessoas pardas, mestiças e de índios. Por isso fala tanto do ‘amalgamento’. Lembro também que desde cedo ele se mostra alguém muito ambicioso. Essas pequenas famílias descendentes de aristocratas portugueses queriam fazer carreira dentro do aparelho de Estado português. Então vai se tornar um homem muito pedinchão, em busca de reconhecimento. A gente vê na correspondência que ele escreveu da Europa para o Brasil como está sempre atrás de favores, de cargos. Vai odiar por conta disso o antigo regime no qual viveu, afinal de contas é um funcionário de Dona Maria I e vai ver que todas as demandas que faz nunca são atendidas. E, ao mesmo tempo, vai amar os reis, a coroa, a ideia de reino, vai lutar em torno disso. Bonifácio teve também inúmeras perdas afetivas, materiais. É um homem pobre, quando se queria rico. Queria ser fidalgo, coisa que não conseguiu, mas vai se tornar aristocrata graças ao apostolado que vai criar para reunir pessoas de sangue azul. Enfim, é um homem corajoso, que vai enfrentar seus inimigos pelo verbo, na discussão, mas sobretudo de ‘pau na mão’. A família já era conhecida, lembro que houve ‘acidentes’ em Santos. Ele teve um irmão que assassinou um desafeto com uma facada no peito, então é uma família que está envolta nessa aura de violência, de resolver tudo na base da pancada. Ele vai costurar a independência do Brasil com as linhas mais arcaicas possíveis, porque vai fazer, obviamente, uma aliança com os grandes proprietários de escravos, cafeicultores. É difícil pensar num José Bonifácio que seja só herói, que seja amiguinho de Dom Pedro, Leopoldina, não foi bem assim. É um homem perpassado por essas ambiguidades todas, extremamente ambicioso, a gente vê isso acompanhando a correspondência dele publicada. O importante não é exagerar nos louvores a ele, mas sim mostrar que são esses homens complexos que fazem a grande história, e é o caso dele. Um homem extremamente complexo. 

É complexo como todo ser humano. O que mais te chamou atenção na história dele? 

Procurei primeiro acompanhar a infância. E a trajetória que os autores apresentaram José Bonifácio fica parecendo assim com o menino Jesus entrando no Templo, o sábio. Não foi bem assim. Não há registros desse jovem estudante, mesmo porque não há registros de vida estudantil em São Paulo na época em que teria passado na cidade, que neste momento está começando a enriquecer. Há um embrião de portugueses que começam a receber mercadorias que vão repassar para o interior de Mato Grosso. Esse é o momento da descoberta das minas de Mato Grosso e Goiás, então são esses portugueses que estão em São Paulo e vão fazendo fortuna. Mas a cidade é mínima, não tem biblioteca, tem um ou dois professores de Letras, deixo isso bastante claro no livro, fui atrás disso. Depois essa ideia de que ele vem para o Rio e vai para o Mosteiro de São Bento onde vai deixar as pessoas encantadas com a inteligência dele… Falei várias vezes com o bibliotecário de lá, não há qualquer registro da passagem de José Bonifácio na juventude no mosteiro. Certamente veio para casa de amigos dos pais, porque era uma família portuguesa, tinha amigos comerciantes no Rio. Ele fica na Rua Direita, onde faz as primeiras poesias dele. E era um grande mulherengo. Isso é uma coisa engraçada, que desde cedo aprecia as mulheres bonitas, vai cantar em prosa e verso a beleza delas. Mas eu tive a oportunidade de viver entre a Europa e o Brasil e nunca vi nem em Londres, ou qualquer lugar, qualquer menção ao ‘cientista brasileiro’, o ‘mineralogista brasileiro’, nem na The Royal Society de Londres, cujos arquivos mexi. Ou seja, não há marcas dessa viagem deste mineralogista tão conhecido. Aos poucos fui descobrindo que nessa questão de mineralogia, leia-se um técnico de mineralogia, era um cara que entrava embaixo da terra e ia ver como se construía, como se faziam as escavações, iam atrás dos minerais. Fui, então, atrás da viagem dele, porque todo mundo dizia que tinha estudado em Paris, com os maiores sábios. E ele chega lá logo depois da Revolução Francesa (1789-1799). Aquelas figuras todas com as quais esses autores diziam que ele tinha estudado estavam envolvidos com a revolução. Então não tinha ninguém nem no Jardin de Balata, nem nas academias de ciência, para dar aula a José Bonifácio. Lavoisier, por exemplo, já tinha sido condenado à morte. Bonifácio faz um curso rápido de dois meses entre setembro e janeiro e a famosa Sociedade Filomática, que autores antigos dizem que ele pertencia, não passava de um centrinho universitário que reunia médicos, não tinha nada a ver com mineralogia. Eram seis médicos que alugavam uma sala e saíam em Paris no final de semana herborizando, ou seja, coletando vegetais, porque achavam que podia ter algum efeito no tratamento medicinal de algumas doenças. Essa Sociedade também é uma piada. É um momento que todas as cortes europeias, trato disso no livro, estão preocupadas com ciências. Quer para enriquecer os próprios estados, monarquias, quer para o luxo de reis e monarcas, que achavam interessante ter um gabinete de raridades, de colecionismo. Quem conhece os museus europeus sabe perfeitamente que a presença desse interesse pela ciência é muito grande neste momento, final do século 18. Ele está neste clima e vai tentar se aproximar o máximo que pode de intelectuais da academia portuguesa que eventualmente possam se interessar pelas ciências naturais, que é no que é formado. Vai começar as viagens dele, que não têm nada de poéticas ou aventurescas, é viagem de um pequeno funcionário, sem dinheiro. Portugal já tinha tentado outras viagens dessas, com outros cientistas na África, que foram um desastre total, visto pelas correspondências. Os cientistas não conseguem nem embalar o material que descobrem, nem contar com ajuda dos funcionários da corte. E Bonifácio está sempre sem dinheiro, sempre escrevendo dizendo que o salário dele não dava, era uma miséria. Vai atravessando o norte da África, visitando uma série de países, mas sempre como um pequeno técnico. A figura importante portuguesa na Europa, neste momento, não era José Bonifácio, é o José Correia, o famoso Abade Serra, que esse é o único português conhecido pela The Royal Society como alguém que está trabalhando. Para você ter uma ideia de como a família é indigente neste momento, os irmãos dele que estão estudando também em Coimbra (Antônio Carlos e Martim Francisco) – que aliás acolheu vários estudantes brasileiros, muitos pardos e mestiços afro brasileiros, que iam estudar Direito – e eles eram tão pobres que trocam a moradia deles no Arco do Cego por traduções. Em troca disso podiam ficar lá albergados. Ele se queixa muito dessa vida toda na Europa, escreve falando que preferia comer ‘farinha de pau no Brasil’ do que continuar vivendo em Portugal. E Bonifácio não era uma pessoa que passava boa impressão para os estrangeiros. Também quem não vai ter uma boa impressão dele é o Lord Cochrane, que vai contratar para montar a Marinha do Brasil, e logo de cara tem uma série de problemas com José Bonifácio, mas isso quando ele já está como Ministro das Relações Exteriores. Fica 36 anos fora do Brasil e quando chega aqui, com essa aura de velho funcionário da Coroa Portuguesa, alguém que teria viajado pela Europa, isso lhe dá o lustro que tanto precisava, mas nunca a condição financeira que tanto queria. A luta de José Bonifácio é o tempo todo com a falta de dinheiro e reconhecimento. Não é à toa que ele vai abraçar essa possibilidade de trabalhar com Dom Pedro I como o grande momento da vida dele. Lembro também que os dois irmãos dele já tinham se envolvido em conspirações pela emancipação do Brasil. Antônio havia se envolvido em toda revolta de 1817 que vai tentar transformar Pernambuco em uma república emancipada de Portugal. O Martim, que havia ficado no Brasil, em um cargo pequeno de mineralogista, vai fazer uma coisa muito hábil, que dá inclusive muita sustentação à carreira política de Bonifácio. Ele percorre as cidades do interior incentivando a se insurgir contra o domínio de São Paulo. Os governadores gerais da cidade ou eram sempre militares ou padres, e o Martim percebe que há nisso um certo mal-estar das fortunas paulistas que queriam se ver representadas no poder. Ele então vai trabalhando nessas cidades importantes em volta de São Paulo justamente no apoio a um golpe que seria dado justamente pela família Andrada, reavendo assim a sua posição na capitania e referendando, portanto, depois esse papel que José Bonifácio vai ter quando vem do Rio. E eu estava muito interessada neste momento em entender quem é essa pessoa que volta para o Brasil, quais são as marcas dessa experiência mal-sucedida que ele tem como cientista, vai para academia de ciência no momento que todos os nobres e aristocratas vêm para o Brasil. Volta para cá muito pobre, mas com essa figura de sábio. 

Você falando tudo isso é nítido que criou–se um mito em volta de José Bonifácio, inclusive quando veio para o Brasil. Qual foi o pulo do gato para ele se tornar o Patriarca da Independência? E também o que é verdade e o que é mito relacionado à questão da luta  contra a escravidão, pela reforma agrária?

Sempre se invoca o José Bonifácio abolicionista. É importante colocar o homem dentro do seu tempo. O que estava acontecendo à época? O abolicionismo teria sido alguma novidade na vida dele? Lembro que não. Marques de Pombal, já em Portugal, havia feito em 1761 a abolição da escravidão e o que vai acontecer é um debate que os historiadores vão chamar de toleracionismo. Até quando ou como se pode conservar a escravidão sendo tolerante? A coisa era essa. ‘O que a gente pode fazer para conservar a escravidão e parecer que estamos fazendo alguma coisa?’ Acho que é exatamente o papel do José Bonifácio. Ele é um toleracionista. Por que? Sabe que o debate pela abolição está candente e o Dom Rodrigo (com quem Bonifácio trocava correspondências) era, sobretudo, um anglófino, apaixonado pela Inglaterra, e lá estava a sede da Anti-Slavery Society, a primeira sociedade fundada que vai ter realmente uma luta ferrenha contra a questão da escravidão. Então havia esse legado de Pombal, depois o próprio Dom Rodrigo com esse apego, ele havia passado pela França, onde a figura de La Fayette, a famosa figura do general que depois vai lutar pela independência dos Estados Unidos, havia fundado a Sociedade dos Amigos dos Negros. José Bonifácio deve ter se inspirado nele, lido, mas não só isso. Lembro que no Brasil você já tem pioneiros na luta pela abolição. Como o Domingos Borges de Barros, um desafeto de Bonifácio, que de forma muito racista, depois que é feito Visconde de Pedra Branca chamavam ele de Visconde de Pedra Parda. Ele falava que era preciso vasculhar as colônias agrículas para não termos escravidão. O Padre Arruda Câmara era a favor do fim da escravidão. José Bonifácio, portanto, não é pioneiro nessa questão. Ele vai encontrar um pensamento que está estruturado aqui no Brasil discutindo até que ponto é possível ter a escravidão, é o famoso toleracionismo. A mesma coisa no discurso dele sobre a questão indígena. José Arouche Rendon, que vem com ele na comitiva que encontra Leopoldina perto da Fazenda Jesuítica, ele já tinha tido inclusive uma enorme experiência dentro de comunidades indígenas. Mesmo São Paulo todo já está comprovada a miscigenação dos paulistas de ‘400 anos’ com os indígenas, o sangue índio das grandes famílias paulistas. O Arouche Rendon tinha convivido com tribos e era a favor da inclusão do índio na sociedade brasileira, que é também um projeto do Pombal, que dava benefícios a portugueses que se casassem com índios. Só lembrar que isso não tinha grande novidade. O que é inovador no pensamento dele é a questão do fim do latifúndio. Ele, que nunca teve terras, está vendo os cafezais inundarem o Vale do Paraíba, um enriquecimento de muitos paulistas e norte-fluminenses, era por conta disso. Então ele é a favor do fim do latifúndio, de uma reforma da terra, isso acho que é muito dele. Agora esse ‘campeão do abolicionismo’ não é, tanto que faz uma aliança com os cafeicultores para fazer a nossa emancipação. Ele articula esse conservadorismo dos grandes senhores de terra, sobretudo os mineiros apegados à questão da escravidão, vai fazer essa aliança para poder consolidar isso. Diria que é um homem avisado no sentido de usar esses temas todos para mostrar que o Brasil poderia ser um império que gradativamente emanciparia os seus escravos, mas o que acho importante sublinhar neste momento que há tantos radicalismos é que José Bonifácio, até por ser alguém que conhecia a química, vai falar o tempo todo de amalgamento de raças, de negros, brancos e índios, porque está vendo isso na volta dele. Dom João VI já tinha conselheiros que eram pardos. O médico de Dom Pedro I também. Há várias presenças afro-mestiças na corte, tanto na de Dom João quanto futuramente na de Dom Pedro. Ele entende que o Brasil é mestiço e vai valorizar isso e dizer: ‘acho uma coisa importantíssima’. Amalgamento, mestiçagem, portanto, e reforma da terra, são as falas originais dele. Agora o abolicionismo, incorporação dos índios na sociedade brasileira, já vinha sendo discutido por muita gente desde os tempos do Pombal, século 18.

E as rusgas com Dom Pedro, aconteceram por causa da Constituinte, há uma história de que era apaixonado pela Leopoldina. O que de fato aconteceu que ocasionou o afastamento deles?

Nesse caso do José Bonifácio com a Leopoldina, a Globo (que fez uma novela que tratava disso) deveria ser processada criminalmente, porque é fake news. Por induzir as pessoas que não conhecem a história ao erro absoluto. Dona Leopoldina era uma mulher extremamente piedosa, fiel ao marido, ela nunca se aproximaria de um funcionário para ter qualquer tipo de relação se não fosse, como foi, durante a sua regência, uma relação de auxílio a Dom Pedro. E ela não assina nada, nenhuma independência, não assinaria nenhum papel sem a anuência do marido. Bonifácio também, que foi um homem criado dentro do antigo regime, sabia que não poderia passar de um determinado patamar no respeito com a futura imperatriz e com a atual arquiduquesa com a qual se relacionava. O convívio de Leopoldina com Bonifácio era um momento da regência em que ela faz parte das reuniões ministeriais, que vai escrever para Dom Pedro ‘agarre o fruto antes que ele caia de podre’, as famosas cartas para São Paulo orientada por José Bonifácio. Mas não passou disso. Depois ela volta para São Cristóvão, para ter um filho atrás do outro, até morrer. O contato com José Bonifácio é muito pequeno. Ela tem sim contato com o marido, porque mesmo grávida ela ia praticamente todos os dias para o arsenal da marinha porque era a poliglota que falava em alemão, francês, inglês, com os exércitos de mercenários que estavam sendo contratados pelo Brasil neste momento para defender suas trincheiras. Quando José Bonifácio, por pressão, renuncia pela primeira vez ao seu cargo de Ministro das Relações Exteriores e Dom Pedro I vai a cavalo à casa dele, no centro do Rio, pedir para voltar, porque não tem ninguém melhor para colocar no lugar, ela vai na companhia do marido. E isso ela faz do início ao fim, só obedece às ordens dele. Mas o que acontece entre Dom Pedro e Bonifácio? Volto a insistir nos interesses familiares que o segundo já demonstrava ter aqui no Rio, na corte, de dominar o tráfego de barcos entre Santos e Rio de Janeiro, tendo como pano de fundo a luta da maçonaria vermelha e azul por uma participação espessa neste momento da história. A vermelha sempre muito a favor de uma futura república, de passagem de ideias republicanas no seio de todas as discussões do futuro império brasileiro. E a azul representada por Bonifácio, muito interessada em acenar com a bandeirinha da revolução haitiana: ‘que se não fizesse tudo dentro da ordem e da absoluta força centralizada o Brasil poderia se transformar em um segundo Haiti’. Há essa cisão o tempo todo entre esses grupos da maçonaria, mas lembro que Bonifácio vinha ganhando uma envergadura no ministério que não agradava a outros políticos. Sempre muito cheio de si, jogando políticos uns contra os outros. Dom Pedro vai gradativamente percebendo essa tentativa de hegemonia que ele quer ter no interior da assembleia e dos debates ali travados. Lembro que neste momento o príncipe já está apaixonado por Domitila de Castro e ela tem uma antipatia profunda por José Bonifácio, que também a odeia. A chama de prostituta, de ‘michela’, que era o nome que se dava à época, e o que vamos ver é que tudo isso vai contribuir para derreter as bases que ele tinha. É neste momento que vai se dar o famoso acidente que Dom Pedro cai do cavalo, quebra as costelas, é removido para dentro do Palácio de São Cristóvão, onde vai começar a receber visitas de políticos de toda parte. José Bonifácio era odiado na Bahia, onde vai se dar a guerra, era o ‘pachá paulistano’. É só pegar a correspondência do Cipriano Barata para ver como ele e vários outros políticos do norte – nesta época não chamavam de nordeste – percebem todas as artimanhas dele para consagrar um grupo de interesses que está sendo representado por traficantes de escravos e grandes fortunas cariocas no fato de querer guardar para si o poder. Essas pessoas vão visitar Dom Pedro, ao lado da Domitila, que está nos seus ouvidos, e vão contar que Bonifácio os persegue, persegue a imprensa, os jornalistas. Manda bater neles, quebrar de pau os inimigos. Ele tem um grupo que persegue seus desafetos e isso tudo chega aos ouvidos de Dom Pedro, que o chama e ele aproveita para fazer uma acusação a Domitila, dizendo que ela ganhava dinheiro em troca de informações. Essa é a gota d ‘água entre os dois. Depois vai criar o seu famoso jornal O Tamoio, onde vai tentar se proteger dessa demissão dada pelo imperador e vai criar esse personagem vítima de uma conspiração, além da ideia de que são os Andradas que fazem a independência, são os ‘patronos da independência do Brasil’. Ele se auto entrevista na figura desse sábio em que se coloca em primeiro lugar, toda sua atuação e seus irmãos na realização da emancipação. Desta forma ele é então mandado para uma viagem, é exilado na Europa. Gonçalves Ledo (jornalista e político), que ele havia conseguido exilar, está voltando para o Brasil e dá tchau para ele do cais do porto. Há várias tentativas de boicote deste barco que leva também o grande Francisco Montezuma (político e advogado), que se torna aliado, e depois quando volta para o Brasil é conselheiro de Dom Pedro II e vai ser mandado como embaixador para Inglaterra. Descem na Espanha e vão se arrastando a pé para França, onde vamos ver esse homem se acabando de tristeza, primeiro insultando o imperador, dizendo que não tem a menor condição de governar o Brasil, e depois gradativamente mostra que está saudoso, pedindo perdão para o imperador e depois de alguns anos volta ao Brasil. 

Você acha justo o título que ele ganhou de Patriarca da Independência?

O título que ele se outorgou nessas entrevistas. A partir daí acho, isso é pessoal, que o crescimento de São Paulo na história do Brasil – essas figuras todas servem para valorizar uma determinada região – essa ideia do patrono acaba sendo consagrada por aquele que vai ser o estado mais poderoso do país, ao longo do século 19 e é por conta disso essa imagem dele. Nós esquecemos que houve outras figuras importantíssimas, Gonçalves Ledo foi uma delas, o Januário da Cunha foi de grande importância nessa luta, o próprio Cipriano. Temos grandes figuras que vão lutar pela emancipação do Brasil, cada um na sua área, são figuras que a gente não percebe, porque ninguém os consagrou como patronos, e hoje, com essa revisão histórica que existe, nós vemos inclusive a participação de negros na luta pela independência na Bahia, os livres e escravizados, mulheres negras que participaram também. Quando se fala em independência não foi um berro que Dom Pedro deu em São Paulo. A verdadeira se dá, a meu ver, como historiadora, nas guerras sangrentas que vão se travar na Bahia e que sucedem ao grito de São Paulo. A Bahia vai passar um ano imersa em sangue, com perdas de vida, com fome, lutando contra os portugueses, coisa que o Lorde Cochrane vai conseguir depois, em 1823.

São 200 anos deste dito grito da independência. O Brasil, na sua opinião, é independente? 

Em alguns aspectos sim. Mas se você me permite uma ironia, de alguém a quem dói muito ver o Brasil como está, o país hoje, infelizmente, embora tenha rastros de independência, tenha setores de excelência – desde o professor da escola pública do primeiro grau, nós que lutamos pela educação no Brasil, estamos tentando fazer um país independente – lembro que o país hoje está nas mãos do ‘centrão’, um laboratório de répteis – me perdoem os estudiosos de serpentes. Estamos absolutamente dependentes de um sistema político extremamente contaminado pela corrupção, pelo baixo nível intelectual dos representantes que nós, infelizmente, elegemos, mas que fez várias conquistas. Nossa democracia seria uma delas e me apego a isso, à ideia de que podemos trocar presidentes a cada quatro anos, acreditar que um dia seremos um país se não independente, independente da miséria, da intolerância, da desigualdade, tendo transformado o Brasil num país realmente civilizado.  

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 4 de agosto de 2022

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