“Obra de Benedicto Calixto mostra intenção de criar uma identidade cultural paulista”, diz o pesquisador Pietro Amorim, do Museu do Café

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O pintor paulista Benedicto Calixto (1853-1927), um dos mais importantes do país no início do século 20, ficou conhecido por sua extensa produção, marcada pela técnica de retratar paisagens e cenas históricas, e o detalhismo para compor seus quadros, recorrendo a mapas, fotografias, livros e vestígios documentais. Os três quadros e o vitral que Calixto produziu sob encomenda para o Palácio da Bolsa Oficial do Café, edifício suntuoso erguido pela aristocracia cafeeira e inaugurado em 1922 no centro de Santos, onde eram realizados os leilões do produto, servem como referência da obra do pintor.  As telas reproduzem momentos históricos da cidade em três datas: na fundação da vila de Santos, em 1545, na vista do porto em 1822 e em 1922, esta retratada na época em que o quadro foi pintado. Nelas, juntamente com o vitral, estão presentes os elementos recorrentes no trabalho de Calixto: a ênfase em reforçar o protagonismo paulista no cenário nacional, por meio da construção heroica de personagens, como os bandeirantes e os imigrantes. 

É o que mostra esta entrevista com o historiador Pietro Amorim, pesquisador do Museu do Café. Inaugurado em 1998 no antigo prédio da Bolsa Oficial do Café, em Santos, o museu — uma instituição da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo — preparou uma agenda de eventos e exposições ao longo de 2022 para comemorar o centenário da construção do prédio e o Bicentenário da Independência do Brasil.

Gostaria que você contextualizasse a importância de Benedicto Calixto no cenário artístico paulista e brasileiro no período que vai do final do século 19, quando ele começou a ficar conhecido, até sua morte, em 1927.

Calixto teve uma carreira extensa e uma produção bem diversificada. Ele não foi um pintor acadêmico, com trajetória formal – no sentido de estudar na academia imperial, na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro –, mas teve uma formação posterior. No início foi um autodidata, embora tenha conseguido depois uma bolsa para estudar na França para aperfeiçoar sua formação. Ele nasceu em Itanhaém, na Baixada Santista, teve um período em que morou em Brotas, no interior paulista, onde pintou retratos e cenas em fazendas. Ele acabaria se consolidando como pintor em Santos, onde passou a trabalhar sob encomenda para a elite santista e para empresas, ganhando notoriedade. Quando voltou da França, no final do século 19, Calixto começou a se especializar na pintura histórica de paisagem, da Baixada Santista e do estado de São Paulo em geral. Foi quando começou a produzir para o Museu Paulista, depois da inauguração, e para o governo do estado. Foi um período que sua obra começou a ter demanda. Para entender melhor o contexto é preciso lembrar como estava São Paulo e o país naquele momento. Era um período de passagem da monarquia para a república, ocorrida de forma repentina ou abrupta, e ainda se discutia qual seria a identidade nacional dessa nação que se formava. São Paulo, assim como o Rio de Janeiro, estava tentando se posicionar com protagonismo nessa nova realidade nacional. No caso de São Paulo, havia o desejo de se contrapor à capital federal e construir sua própria história, sua própria arte, um passado que justificasse esse protagonismo paulista no cenário nacional. Com isso, São Paulo investiu na questão histórica, com um trabalho significativo na construção heroica dos bandeirantes. Calixto está profundamente envolvido nesse contexto, produzindo muitas paisagens e cenas históricas regionais e também trabalhando na questão dos imigrantes. Com isso, consegue se posicionar dentro desse contexto paulista de forma interessante, ganhando prestígio.

Calixto sempre teve uma ligação pessoal com a cidade de Santos: nasceu em Itanhaém, foi estudar em Paris com uma bolsa paga pela elite comercial santista e, na época da construção da Bolsa do Café, fazia sentido ser o escolhido para produzir as obras e o vitral. Foi dele a proposta de criar três telas inspiradas em momentos históricos de Santos – uma que retratava a fundação da vila de Santos, em 1545, outra que retrata o porto de Santos em 1822 e, finalmente, uma obra atual da época, o porto de Santos em 1922?

Essa questão da escolha dele sobre as obras da Bolsa do Café é interessante porque ele estava inserido, como disse antes, num círculo de intelectuais e políticos voltados para a questão paulista. Principalmente por meio do Instituto Histórico e Geográfico paulista (da qual fazia parte), ele tinha contato com Afonso Taunay, diretor do Museu Paulista, com Roberto Simonsen – dono da Companhia Construtora de Santos, que construiu o prédio da Bolsa do Café – e com Washington Luiz, governador de São Paulo na época. Calixto era muito bem relacionado, o que certamente pesou na escolha dele para pintar as obras para a Bolsa do Café. Não se sabe, porém, de quem partiu a ideia de fazer as três telas. Mas no contrato assinado com ele foram encomendadas as obras com essas características: para tratar inicialmente a fundação da vila (1545) e depois se chegou a um acordo das telas laterais. Como ele estava sempre se correspondendo com seus pares, é possível que ele tenha se correspondido com o Simonsen e pedido orientação ou tenha sido consultado por ele sobre esses temas, embora não exista documentação disso.

Vale abordar, de forma detalhada, as três telas e o vitral produzidos por Calixto. Podemos começar com o quadro “A Fundação da Vila de Santos – 1545”. Existem registros de onde ele pesquisou o cenário retratado na obra?

Não existe um registro histórico de como teria ocorrido a fundação da vila de Santos nem a localização exata de onde ele teria retratado a tela. Além de pintor, Calixto sempre foi um historiador – pelo menos na concepção da época dele –, baseando-se sempre em documentos, cartografia, bibliografias e vestígios documentais para lhe dar uma fundamentação desde questões mais amplas de como retratar os locais e até detalhes de indumentária dos personagens. Então, com certeza, buscou amparo em documentação para trazer um caráter mais histórico do que seria uma cena construída. Ele mexe um pouco com a localização dos edifícios – no quadro, ele retrata a Casa do Conselho, a Igreja da Misericórdia (que aparece sendo construída, que seria depois a primeira Igreja da Matriz), o Pelourinho, e, mais atrás, o Outeiro de Santa Catarina, só que ele dá uma aproximada no Outeiro para caber tudo na composição da tela. Ele fazia esse jogo. A mensagem que ele queria passar era mais relevante que a precisão dos detalhes, dos fatos. Mais importante do que a localização das construções são as pessoas. Como disse, embora não exista registro de como aconteceu esta cena, é pouco provável que as pessoas que ele coloca de fato estivessem lá. Mas o que ele queria era representar a genealogia paulista, todos os grupos considerados importantes estavam na cena: tem governadores de capitanias, grupos religiosos, militares, personalidades regionais e até grupos indígenas. Ele tenta fazer essa composição no que seria esse momento. Ele se baseia sempre no caráter documental, mas é muito na construção da perspectiva dele da história.

Para pintar a segunda tela, “O Porto de Santos em 1822”, Calixto certamente também teve de recorrer à pesquisa histórica. Quais são os pontos mais relevantes do processo de criação de Calixto que você destacaria nesse quadro que, a rigor, servem para todas as obras dele, sempre meticuloso e detalhista?

Como disse, ele sempre se baseou em documentação. Junto com o filho, ele inclusive produziu um mapa e esse trabalho foi um estudo maior, tanto que ele desdobrou depois em outras telas menores – como se fossem aproximações das construções retratadas. E tem o detalhe da vista: ele escolhe ficar do outro lado estuário, onde seria a Ilha de Barnabé, para apresentar uma amplitude do que seria a vila, mas trabalhando elementos geográficos, misto de natureza e cidade, o que é bem interessante.

O terceiro quadro, “O Porto de Santos em 1922”, retrata a cidade no momento em que ele pintou a tela. Como você disse, Calixto sempre foi um estudioso meticuloso, usando fotografias e pesquisas cartográficas para reproduzir paisagens em suas obras. O que lhe chama a atenção nessa tela que reforça o estilo de Calixto?

Ele tinha um estilo que não se alterou muito ao longo da carreira. Muitas obras dele são parecidas, sejam paisagens ou construções históricas. Ele também se utilizou muito de fotografias para auxiliá-lo na carreira. Usou fotos de Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), fotógrafo que retratou a cidade no século 19, e provavelmente Marc Ferrez (1843-1923) também. Neste caso, mais específico, provavelmente ele mesmo deve ter fotografado para ajudar o trabalho dele. Existe uma foto que não se tem autoria explícita dele, que está no acervo do Museu Paulista, que é justamente desse ponto do Morro do Pacheco, que é onde ele faz essa tela. Mas precisamos sempre analisar o quadro olhando o anterior. Podemos analisar as construções, o que ele tentou retratar, uma cidade certinha, civilizada, bem planejada, com o porto margeando a cidade. Mas o que estava em voga na época, no início do século 20, eram os alvos comparativos, o antes e o depois, por causa das transformações urbanas. Isso se reflete na obra do Calixto. São obras que podem ser entendidas no conjunto, para mostrar essa mudança da cidade, essa urbanização, que veio principalmente com o dinheiro do café, que vai transformar a aparência e o ritmo que a cidade de Santos vivia no período. Com certeza tem um pouco desse discurso do progresso, uma linha evolutiva que as cidades passavam.

O belíssimo vitral “Epopeia dos Bandeirantes” é interessante porque muita gente desconhecia que Calixto também fez outros trabalhos artísticos além da pintura. Há outros vitrais importantes produzidos por Calixto que valem a pena mencionar?

Desconheço que ele tenha feito outros trabalhos em vitrais. Esse da Bolsa do Café foi feito junto com a Casa Conrado. Ele fez a concepção do desenho, o esboço, e trabalhou em conjunto na escolha de cores, etc. É um trabalho único, diferente da pintura histórica e de paisagens que ele apresentou em outras obras, simbólico e alegórico. O vitral é dividido em três partes: a parte central, que é a visão do Anhanguera; e as laterais, que retratam lavoura e abundância, e comércio e indústria. Do mesmo jeito que nas telas apresenta a história da cidade em três momentos, ele faz o mesmo no vitral. Tenta traçar uma linha desde o bandeirante, eleito um tipo paulista a ser representado, traz folclore, fauna e flora nacionais para dar uma característica única desta cena, e trabalha nas laterais utilizando figuras mitológicas para apresentar a lavoura e a abundância – que representam riqueza para os trabalhadores. E, também, indústria e comércio se situando no porto de Santos, no período da República. Calixto escreveu um livreto explicando esse vitral, deixando muito claro que queria mostrar uma continuidade do bandeirante, que se cansou da vida nômade, decepcionado com a Coroa. Aí começa a se voltar para a terra, trabalhando na agricultura no período do Império, e depois passa, já na República, para os industriais. Então ele está muito alinhado com esse grupo de paulistas que queria traçar sua própria história lá atrás, desde os bandeirantes até a aristocracia cafeeira. 

Essas telas para a Bolsa do Café foram produzidas em 1921, na parte final da vida dele, pois Calixto morreu em 1927. Ou seja, ele já era reconhecido e sua obra, madura. É possível estimar quantas telas ele produziu ao longo da carreira?

É difícil estimar, porque o acervo dele é bastante fragmentado. Tem obras dele no Museu Paulista, na Pinacoteca Benedicto Calixto, no Museu de Arte Sacra, tem telas dele na Associação Comercial e em coleções particulares. A obra dele se espalhou muito. Mas foi uma produção muito vasta porque ele teve uma carreira longa. Ele sempre pintou no mesmo estilo desde o começo do século 20.

Dentro do contexto do bicentenário da independência, sempre fazemos uma pergunta aos nossos entrevistados: você acha de fato que o Brasil é um país independente?
É uma pergunta complexa…Temos percebido, em especial mais recentemente, que o nosso país – como os demais – está muito sujeito a fatores externos. Um conflito ou uma situação longe daqui vai nos influenciar de certa maneira. Internamente ainda estamos muito sujeitos a interesses privados ou corporativos que vão se sobrepondo a interesses nacionais. Somos relativamente independentes.

(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)

Publicada em 5 de outubro de 2022

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