‘O quadro do grito do Ipiranga é a certidão de nascimento do Brasil independente’, afirma o biógrafo do pintor Pedro Américo, Thélio Farias

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Um menino que vivia em um vilarejo no interior da Paraíba tinha o dom de desenhar. Seu traçado ganhou fama na população local, tanto que foi indicado – ainda que tivesse apenas 8 anos – para participar de uma expedição liderada por um francês pelo nordeste brasileiro. O homem duvidou do seu talento: ‘faça essa espingarda’. Missão cumprida. ‘Agora desenhe aquele cavalo’. Idem. E não é que sabia fazer mesmo? Com a permissão do pai, Pedro Américo de Figueiredo e Melo passou a acompanhar o grupo, sob a condição de depois ganhar estudos. Não à toa, tornou-se o pintor do quadro que acabou virando símbolo da emancipação brasileira, Independência ou Morte, que hoje pode ser visto no Museu do Ipiranga. 

Essa trajetória singular é contada no livro recém-lançado Além do Ipiranga – A extraordinária vida de Pedro Américo e Suas Facetas, escrito pelo seu conterrâneo, o advogado Thélio Farias. A publicação, já lançada em São Paulo e, em breve no Recife e Rio de Janeiro, traz todas as nuances desse personagem que fez história tanto no Brasil quanto no exterior. Farias reconhece as polêmicas em cima do quadro mais famoso do pintor paraibano, mas justifica as suas escolhas. “Hoje a história já concorda que a cena não foi bem aquela. A verdadeira foi bem mais pobre, singela, do que ele efetivamente pintou. Mas ele o fez de forma proposital. Queria dar glamour à independência. Uso um termo que ele queria ‘civilizar’, achava que se está fazendo um quadro histórico, que apresentaria um momento de suma importância para o país, ele teria de ter imponência, glamour e civilidade.” Para ele, a famosa obra de arte é a ‘certidão de nascimento do Brasil independente’. Confira, a seguir, a entrevista completa. 

Você prepara para lançamento um livro que conta a ‘extraordinária vida de Pedro Américo’, autor do quadro símbolo da independência do país. Gostaria que me falasse sobre esse projeto e a escolha do título. 

Vamos começar pelo título: Além do Ipiranga porque entendo que o estudante hoje instruído conhece Pedro Américo devido aquele quadro fantástico que está no Museu Paulista. Muitas vezes ao perguntar quem era Pedro Américo, o estudante respondia: ‘é o pintor do quadro do Ipiranga’. Mas ele foi muito mais do que isso, e aí vem o ‘extraordinário’. Porque ele foi além de pintor, foi romancista, ensaísta, o segundo brasileiro a obter o título de Doutor pela Universidade de Bruxelas, foi caricaturista, arquiteto, com vários prédios construídos no Rio de Janeiro, foi precocemente ecologista, em uma época em que ninguém falava sobre isso. Também político, deputado federal eleito pela Paraíba na primeira legislatura da República, a Constituinte de 1891, foi músico, compôs polca e valsa, também poeta, viajante, historiador planetário em uma época que não era fácil viajar. Ele teve, portanto, uma vida extraordinária, um brasileiro de várias facetas. Até ouso dizer que é o que mais se aproxima de Leonardo da Vinci, pelos múltiplos talentos. Ele tem uma tese aplaudidíssima na Universidade de Bruxelas sobre ciência. Também foi sociólogo, tem um livro de filosofia – durante sua vida escreveu 22 títulos. Ele foi esse personagem ligado à independência devido ao quadro, mas é muito mais do que isso. Conclamo até neste livro para que os brasileiros olhem esse personagem além do Ipiranga, que honra e engrandece a história do Brasil, principalmente a do século 19. Como o conheci? Na verdade ele nasceu em uma cidade perto da minha, resido em Campina Grande. Ele é da pequena Vila Real de Areia, hoje é uma cidade belíssima, e era um menino pobre, sem condições. Muitas vezes ia visitar Areia, escutava a história daquele paraibano que tinha alcançado o ápice da glória. Inclusive considerado o maior artista brasileiro do século 19, aclamado internacionalmente. Por outro lado observava que nem mesmo os conterrâneos sabiam detalhes de sua vida. Comecei como curioso a estudá-lo, não tinha a pretensão de fazer uma biografia, apenas ensaio, algo para o jornal. Foi crescendo essa pesquisa, fui cinco vezes a Florença, onde ele residiu e faleceu. Tive contato com descendentes italianos dele, tem dois bisnetos que moram lá e são arquitetos. Tive acesso à documentação inédita no Brasil, que estava com a família. Também encontrei outra linhagem de embaixadores que está no Rio de Janeiro e terminei fazendo esse livro. 

A história dele com a família real começa de um jeito interessante. Queria que me contasse sobre essa história e como se deu a relação deles até irem embora do Brasil. 

Pedro Américo é um menino que desenha muito bem, repleto de talentos, no interior esquecido da Paraíba. Houve uma expedição francesa, autorizada pelo imperador Dom Pedro II, que explorou o estado, além de outros do nordeste. Nela havia um líder chamado Louis Brunet, médico formado na França, tinha muito prestígio, amigo de Alexandre Dumas (escritor), e por ter ficado viúvo, quis mudar de vida e se aventurou pelo Brasil do século 19. Pediu autorização e foi fazer expedição com objetivo de localizar minério e estudar a fauna e flora do nordeste brasileiro. Como não existia fotografia, ele trouxe um desenhista alemão, chamado Bindseil. Em determinado momento ele caiu do cavalo, quebrou os dois braços, e ficou impossibilitado de desenhar, que era o objetivo. O francês estava na Vila de Campina Grande, e perguntou quem poderia desenhar. Alguém disse: ‘tem um menino na cidade de Areia que desenha fabulosamente’. Ele vai lá e procura o menino, ‘filho do dono da bodega’, o seu Daniel. Brunet chega e pergunta: você sabe desenhar? Sim, sei. Desenha essa espingarda, ele faz. Desenha aquele cavalo, o menino corresponde. Ele vai pedindo desenhos e o menino faz com a facilidade de quem está brincando. Esses desenhos, inclusive, estão no arquivo nacional, no Rio de Janeiro. Para continuar a expedição com a criança, o pai autorizou sob condições, desde que ensinassem ao menino, à época com 8 anos, francês e alemão. E assim é feito. Ele fica com a expedição científica que passa pela Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará. Após a expedição, cumprindo a palavra, o francês devolve o menino aos pais e escreve uma carta ao governante da Paraíba e também ao imperador pedindo que ‘abracem essa criança’ e levem para capital imperial, no Rio, para que possa estudar, ter acesso aos meios de educação e para que seu talento seja reconhecido pelo Brasil e mundo, o que efetivamente ocorreu. Dom Pedro II, em sua sensibilidade, recebe a carta e manda que o governo da Paraíba localize o menino e que o envie para a capital, onde vai estudar no Colégio Pedro II, que ainda existe atualmente, e começa uma relação entre Pedro Américo e o imperador, que persiste até o falecimento de Pedro II, um pouco antes do pintor. 

E dessa relação surgiu o pedido para realização dessa obra icônica, cheia de polêmicas. Falam que foi um plágio, que não é a cena real da independência. Qual foi, de fato, a intenção do artista de pintar essa obra que se tornou um ícone da efeméride?

O quadro do grito do Ipiranga é a certidão de nascimento do Brasil independente. Qualquer pessoa que pense na independência imagina ele. Efetivamente hoje a história já concorda que a cena não foi bem aquela. A verdadeira foi bem mais pobre, singela, do que ele efetivamente pintou. Mas ele o fez de forma proposital. Queria dar glamour à independência. Uso um termo que ele queria ‘civilizar’, achava que se está fazendo um quadro histórico, que apresentaria um momento de suma importância para o país, ele teria de ter imponência, glamour e civilidade. Então esteve no Ipiranga, estudou a geografia local, a cena, os uniformes, mas propositalmente deu glamour. Dom Pedro não estava em um cavalo belíssimo, estava na mula, mas o pintor fez isso porque quis. Com isso houve muita polêmica, ainda há. No livro do Laurentino (Gomes), 1822, ele critica a cena, também em Escravidão. O mesmo faz Lilia Schwarcz (em O Sequestro da Independência). Mas Pedro Américo, dentre seus defensores, teve um especial, que foi Machado de Assis. O escritor  disse: “Realmente, a cena não é bem essa, mas prefiro o grito do Ipiranga do Pedro Américo, que é mais bonito, mais genérico e luxuoso”. Se ele fez a cena daquela forma, naquela tela suntuosa no Ipiranga, foi intencionalmente porque entendia que tinha de ser majestosa, grandiosa, como o Brasil queria e quer ser. 

E ele se colocou na cena também…

É interessante que quando ele não assina o quadro, se retrata. Na Batalha de Campo Grande, que está no Museu Imperial, em Petrópolis, não assina e se retrata. Na Batalha do Avaí, no Museu de Belas Artes, no Rio, se retrata como o soldado 33, idade que tinha na época que pintou. E no Independência ou Morte, se retrata como um dos soldados da guarda de Dom Pedro I. Quando assinava não fazia isso, mas era uma forma de dizer ‘eu também participei’ e assinar o quadro com arte. 

Você fala no livro que é ‘além do Ipiranga’. Já citou algumas obras importantes dele, mas queria que dissesse quais são os destaques e onde elas estão?

O que mais detém obras dele é o Museu Nacional de Belas Artes, no Centro do Rio, que incorporou a coleção de Dom Pedro II e da família imperial. Há várias obras também no Museu Imperial de Petrópolis, como a Fala do Trono, um quadro fabuloso, e a Batalha de Campo Grande. Tem também na Pinacoteca e a do Museu do Ipiranga. Em Porto Alegre tem na Fundação Rubem Berta, no Instituto Ricardo Brennand também. Na sua cidade natal tem um da série dos quadros de Cristo e em Florença, na (Gallerie Degli) Uffizi, tem vários quadros dele, como também no Palácio de Turim, um quadro chamado Gênio da Itália (ou Gênio da Monarquia). Existem também coleções particulares, como do Sérgio Sahione de Fadel, que faleceu há pouco tempo, inclusive um especialíssimo, que é como se fosse o rascunho do Ipiranga. Está na coleção Fadel, no Rio. Em outras também existem vários Pedro Américo espalhados, inclusive no Rio, Pernambuco e Parnaíba.

Esse atrás de você é original?

Sim, é o Pedro Américo 1903, que faz parte de uma série de Cristos, que é o Cristo Morto, em Areia, o Cristo Crucificado, que está no Museu Assis Chateaubriand – que fundou dois museus, o Masp e, por ser paraibano, este em Campina Grande -, tem também o Cristo Ressuscitado, de um colecionador do Recife e tem esse Cristo Vivo

A trajetória de Pedro Américo foi cheia de reviravoltas. O que você pode adiantar para gente que não dê spoiler do livro?

Trago novidades no livro e mostro que ele, além de ter sido um grande brasileiro com várias facetas, teve uma vida extraordinária. Houveram momentos em que estava muito bem de vida, foi rico, também passou por outros de pobreza. Foi preso em Paris, naufragou na Costa da Grã-Bretanha, mas escapou nadando até uma praia do País de Gales. Passou por aventuras na Floresta Negra na Europa, também no norte da África, quase foi comido por um leão. Essas curiosidades, dentre outras, além da carreira, trago neste livro para que o público conheça essa vida tortuosa, aventurosa, vibrante, desse paraibano. Inclusive conseguiu coisas que naquela época era praticamente impossível. Como um menino pobre no interior esquecido consegue chegar aos ápices da glória internacional? Para se ter um exemplo, quando da vernissage do Independência ou Morte, feita em Florença, diversos chefes de estado estavam presentes. Dom Pedro II estava lá, mas não era a maior autoridade presente. A Rainha Victoria, mulher mais poderosa do mundo, do Império do Sol Nascente – porque naquela época a Inglaterra abrangia vários países – estava lá e junto com ela dezenas de chefes de estado. O que mostra o grande prestígio do artista, equivalente ao de Leonardo da Vinci quando em vida. Outro exemplo é que no quarto centenário de Michelangelo foram feitos vários eventos em homenagem a ele e o escolhido para falar na principal cerimônia foi Pedro Américo, que também falava diversas línguas. Esses fatos os brasileiros pouco sabem. 

Você acha que de fato ele pintou a sociedade da época de forma correta, uma das funções do artista?

Ele era um pintor clássico ligado à elite. Então fez as sociedades privilegiadas, não só a corte, mas as classes privilegiadas, conselheiros do império, ministros, embaixadores, reis e rainhas, como no quadro Gênio da Itália, ele retratou a elite do seu tempo. Ele tinha esse acesso e proteção. E, na sua cabeça, queria projetar essas cenas históricas, eternizar, mas de forma glamurosa. Entendia que essa era a função do artista, dar glamour aos fatos, usando a criatividade e talento, aos fatos que efetivamente ocorreram. Como no caso da Batalha do Avaí, considerado o maior quadro do Brasil. Só perde para o Guerra e Paz, que está na sede da ONU (Organização das Nações Unidas, nos Estados Unidos), do Portinari. Nesse livro há um interessante texto extra de João Candido Portinari em que ele faz um comparativo entre Pedro Américo, o intitulado como maior pintor do século 19, com o  próprio pai, o maior do século 20. 

E você acredita que ele tenha o reconhecimento que merece hoje?

Hoje, na verdade, ele é pouco conhecido no exterior. Tive até com os bisnetos italianos que também possuem obras na coleção particular e reconhecem que o bisavô foi um popstar vivo. Porque em Florença tem vários relatos dele entrando em uma praça e todo mundo parando para aplaudir. Outros afirmam que ele nunca conseguiu pagar um restaurante, porque o pessoal ia lá e pagava. Em Roma, em Paris, igual. Hoje, internacionalmente, é pouco conhecido, com algumas exceções. Na Uffizi tem alguns quadros, mas o acervo é tão especial. No Brasil permanece conhecido, mas pelo ‘grito do Ipiranga’, que já esteve em livros, abertura de filmes, novelas e produtos comerciais. Um dos objetivos deste livro é tentar resgatar esse personagem. Mostrar que não é apenas o pintor do grande quadro, que é suntuoso, importantíssimo, talvez o mais valioso e importante da história pictórica do Brasil. Mas também foi um grande brasileiro em outras áreas. Interessante que ele, na primeira legislatura da república, propôs no Congresso Nacional o ensino integral. E houve até uma discussão com Prudente de Morais, que seria presidente em seguida, na época presidente do Congresso. Morais dizia: ‘deputado, a intenção é nobre, mas a república não tem orçamento para tanto’. Ele rebate: ‘não tem para isso, mas para muitas outras coisas tem’. A gente poderia estar até em outro patamar se essa visão de educação, amor à arte e cultura fosse adotada no início da nossa república. 

Por que ele foi embora para Itália?

Ele passa a vida alternando o Brasil, reside também na Bélgica, é professor em concurso da Universidade de Bruxelas, que ainda existe. Em outra época vai para Paris, volta para o Rio. Mas a última temporada na Itália foi porque termina o mandato de deputado federal na primeira legislatura e ele não aceita ser reconduzido. Há uma coisa interessante, porque ele se elege deputado federal, segundo mais votado do estado, perde apenas para Epitácio Pessoa, mas depois se decepciona com a política. Propõe o projeto de universidades, que é derrotado, quer levar o ensino ao interior do Brasil, também não consegue. Então se decepciona, não aceita o convite do partido de ser reconduzido. Diante disso, com a eclosão da república, perde seu protetor, Dom Pedro II. E financeiramente começa a entrar em dificuldades. Então recebe o convite para retornar a Florença, onde tinha bastante prestígio, vai morar na Via Maggio, palácio cedido pela Coluna de Firenze, onde o térreo é o estúdio e ele reside no primeiro andar. Já fazendo parênteses, outra curiosidade: era fã de Leonardo da Vinci e esse palácio, do século 17, foi construído em cima da casa de Lisa Gherardini, a Mona Lisa. E ele fica lá porque o mercado italiano o absorve de braços abertos, tem mais encomendas, e ele tem qualidade de vida melhor lá, porque no Brasil as encomendas se escasseiam e ele perde a proteção do imperador, um amante declarado das artes. 

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 15 de setembro de 2022

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