“O Carnaval tem muita identificação com a história da independência, com os momentos de transformações da sociedade”, diz Lúcia Helena da Silva, curadora da mostra ‘Bicentenário – Contado por Enredos e Fantasias’, na Fábrica do Samba

Entre todas as manifestações culturais e artísticas recorrentes no país, os desfiles de escolas de samba seguramente são os que, ao longo dos anos, mais fazem menções a períodos-chave da história do Brasil, seja no desenvolvimento do samba-enredo ou na elaboração de fantasias e adereços. Para comemorar o bicentenário da independência, a Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo preparou uma homenagem especial: a mostra “Bicentenário – Contado por Enredos e Fantasias”. Trata-se de uma exposição imperdível na Fábrica do Samba, espaço da Liga em São Paulo, relembrando desfiles paulistanos que retrataram o tema ao longo dos carnavais. “O Carnaval tem tudo a ver com a história de lutas, e a independência foi uma delas”, afirma Lúcia Helena da Silva, Diretora Sociocultural da Liga e curadora da mostra, na entrevista a seguir. A mostra, de quarta a domingo, vai até 31 de dezembro e tem entrada e estacionamento gratuitos. Com muito luxo, truques cenográficos, espaço para as crianças interagirem com as atrações, além de áudio e vídeo de desfiles e sambas-enredos do passado que fazem referência a passagens da nossa história, a exposição ocupa uma área de 2 mil metros quadrados e traz ainda alegorias de até 8 metros de altura. Cerca de 120 profissionais participaram da montagem da mostra, que recebeu aporte do governo estadual. “É a primeira vez que a Fábrica do Samba se abre à população num evento que não é do próprio Carnaval”, comemora Lucia Helena. Segundo ela, é uma oportunidade para o público mais amplo conhecer de perto como as escolas de samba preparam fantasias e alegorias, um trabalho que envolve cerca de 4 mil profissionais ao longo do ano, chegando a 12 mil nos dias de desfile. “O Carnaval é uma mola propulsora da economia criativa de São Paulo”, assegura.
As escolas de samba sempre recorreram a recortes da história do Brasil para desenvolver de samba-enredo a fantasias de seus desfiles. Neste sentido, ao fazer a curadoria, foi difícil selecionar entre os vários desfiles paulistanos antigos que retrataram o tema, uma vez que certamente havia muitas opções?
Para o Carnaval é um momento especial. Estamos acostumados a contar histórias, é a nossa vida levar enredos para a avenida. Ao se integrar na comemoração do bicentenário da independência, o Carnaval consegue mostrar que conta histórias fora daqueles quatro dias de desfile, continuamente, o ano inteiro. Você já ouviu falar em bom problema? Pois então, foi um bom problema. Nossa equipe – eu, dois carnavalescos, o roteirista e um pesquisador – tínhamos muito material, muito rico. Usamos um critério: buscamos sambas-enredos bem antigos, então tem sala em que o visitante vai poder ouvir, por exemplo, um enredo de 1997. Mas também conectamos com enredos recentes, de memória recente, buscando essa identidade com quem costuma assistir aos desfiles. Passeamos pela história, buscando os mais representativos, e conseguimos colocar de três a quatro enredos em cada sala. Foi muito gostoso esse passeio no tempo porque tinha muito material.
Ao pesquisar os desfiles antigos na preparação da curadoria, quais os eventos ou personagens da nossa história mais citados ou os que mais lhe chamaram a atenção?
Diria que foram mais os comportamentos. Gostaria de destacar que tivemos muita identificação com a luta – o Carnaval tem muito disso, ele leva a luta para a avenida, os momentos de transformações da sociedade, ele exalta muito isso. Tivemos também a parte da inclusão, porque destacamos diversos povos e mulheres lutando, que é um perfil do Carnaval, uma festa totalmente inclusiva e acessível. E destacamos alguns momentos históricos. Lógico que destacamos D. Pedro, passeamos pela vida de Tiradentes, trouxemos a família real e algumas mulheres muito representativas como Maria Felipa (escravizada liberta que lutou pela expulsão dos navios portugueses que cercavam a Ilha de Itaparica, na Bahia, em 1823). Foi bem interessante passar por esses personagens. Posso dizer que escolhemos os mais fortes, que vão ajudar as pessoas a gravar aquelas etapas. Também foi interessante ver como aquela história de independência, dessa luta, conversa com a história do Carnaval – que sempre buscou independência, que sempre esteve à frente na luta, que nunca fugiu de seu papel social. Temos personagens que vão impactar bastante.
A mostra na Fábrica do Samba traz 10 estações carnavalescas sobre o Bicentenário. Queria que você detalhasse um pouco mais as atrações dessa exposição.
Detalhar sem dar spoiler é difícil, mas vou contextualizar esses ambientes. Primeiro, sobre esse conceito de dez ambientes: o Carnaval tem isso como uma lógica. Sempre que levamos um tema para a avenida, repartimos esse tema em pedaços. Você vai notar que são sempre algumas alas, porque é uma maneira didática de as pessoas irem absorvendo o conhecimento em partes. Ou seja, evitamos despejar tudo de uma vez, para deixar a pessoa construir o conhecimento. A primeira estação, por exemplo, é a própria área externa da Fábrica do Samba. E aqui vai uma curiosidade que o governo estadual conseguiu fazer valer: estamos aqui há sete anos, mas é a primeira vez que o espaço se abre à população num evento que não é do próprio Carnaval, que não é uma festa nossa, como por exemplo a gravação do CD dos sambas-enredos, do sorteio da ordem dos desfiles. É uma festa preparada para o povo. Então conseguimos isso de ineditismo — abrir a Fábrica do Samba para toda a sociedade. A primeira estação inclui toda essa recepção, os barracões das 14 escolas de samba do Grupo Especial que estão aqui, cada uma com seu segredo, produzindo o Carnaval 2023 a todo o vapor. O visitante pode interagir, fotografar e se inspirar nesse primeiro espaço. O espaço seguinte tem uma interação com o próprio D. Pedro – ele já vem dando algumas pinceladas da história, nos convidando a voltar ao Brasil Colônia. Não posso contar muita coisa, senão entrego segredos. Mas dá para dizer que foi um material feito com um ator, especificamente para a mostra, que traz, de forma divertida, um pouco da nossa história. A partir daí, os outros ambientes conversam entre si passando pela história. Passamos por dois espaços das riquezas do Brasil Colônia, as mais contundentes – cana-de-açúcar e ouro. Aliás, na sala do ouro, já vou avisar que todos ficam banhados a ouro. Saindo dessas duas salas das riquezas, entramos num espaço onde a gente destaca a participação de Tiradentes, que foi o primeiro que fomentou intelectualmente, participando de um grupo, da luta pela independência. Temos uma animação muito interessante, uma parte audiovisual, mostrando Tiradentes. Antes de passar para o próximo ambiente, vou comentar uma coisa bem legal: em todas as salas trouxemos elementos que já foram usados em desfiles de 2000, 2010, fizemos réplicas desses elementos usados em Carnavais anteriores. De um ambiente para outro fazemos uma pergunta provocativa, que faz com que a sala seguinte traga a resposta, uma forma de aguçar a curiosidade e ativar o aprendizado. Depois de sair de Tiradentes, vamos dar uma passeada na família real: a ideia é entender como se dava esse luxo, temos peças “instagramáveis” da família real que vão produzir fotos lindíssimas. No espaço seguinte fazemos uma reflexão: mas era só Portugal que estava de olho no Brasil? A resposta é não, entramos numa sala de invasões e veremos que muitos países tentaram invadir o Brasil. Toda essa influência que vem da Espanha, da Holanda, da França, e muitas colonizações feitas pelo Brasil vieram dessa época, do Brasil Colônia, tentando pegar um pedacinho do nosso país. Se tanta gente brigava pelo Brasil e o país era tão rico, a próxima estação nos traz uma mostra das nossas revoltas. É muito difícil falar de independência sem falar da nossa luta, sem trazer o quanto nosso povo se engajou. Temos uma surpresa nesta sala: a luta de Maria Felipa. O Carnaval é inclusivo, irreverente e, numa sala de revoltas, põe uma mulher — que reuniu índios, negros e quem quisesse lutar pela causa. É uma sala muito forte, impactante. As últimas visitas que aconteceram foram divertidas porque, apesar de forte, a molecada adora a sala, que tem uma alegoria imensa – vários ambientes têm alegorias de 5 até 8 metros de altura. Saindo das revoltas, com vários grupos brigando pela independência, onde deu isso? Caímos na sala do Grito do Ipiranga, onde ressaltamos as margens do Rio Ipiranga, para pontuar que São Paulo é a terra da independência, estamos pisando no mesmo chão onde foi dado o Grito. O cuidado que o estado tem com o Rio Ipiranga, que foi despoluído porque é um patrimônio que temos e para situar as pessoas em relação ao local onde foi dado esse Grito. Nesse ambiente, temos também um aprofundamento da história. Fizemos uma brincadeira, na qual diversos personagens recebem os convidados nessa estação, cada um em seu livro, mas dando a ideia de que é possível se aprofundar. Por exemplo: cada um desses livros tem a foto da época de Maria Felipa, que antes o visitante viu retratado em escultura. Ou seja, é possível fazer um comparativo. E sempre trazemos um enredo da época, em alguns ambientes, a transmissão do enredo que trata do tema. O visitante vai ter acesso a áudio, vídeo, vai conseguir chegar perto de uma escultura para fotografar. São esculturas imensas, que as pessoas só costumam ver a distância – da transmissão da TV ou da arquibancada –, e isso tem causado um frisson. Nesse momento, a última sala é a da redenção. Em alguns ambientes temos fantasias belíssimas, luxuosas. Nessa sala, por exemplo, temos um casal de mestre-sala e porta-bandeira todo em plumagem branca, que resgata a paz e a independência como algo redentor, maravilhoso! Nessa sala, o visitante é convidado a entrar numa penúltima estação para fazer arte, com tudo o que viu e aprendeu, principalmente as crianças. Elas recebem um material, um encarte, onde pintam, usam gravuras de temas e imagens relacionadas ao que viram, para colorir. Tem um varal onde, depois de feita a arte, o visitante pendura a gravura colorida e depois fotografamos e colocamos no Instagram da Liga – então é um varal presencial aqui, mas com dupla função, virando depois uma imagem digital. É muito legal ver as crianças sentadas, pintando D. Pedro. Depois reforçamos que D. Pedro é “aquele moço da primeira sala”. Isso tudo é uma forma de introduzir, de maneira diferente, a história no cotidiano das pessoas. Chegamos à última estação, onde temos um espaço de shows. Durante a semana, de quarta a sexta-feira, temos um telão que fica passando os desfiles deste ano. Temos também uma exposição de fantasias de luxo, de destaques – daquele pessoal excêntrico, que fica a 11 metros de altura, com fantasias montadas com costeiros, lindíssimas –, uma comunicação mostrando o Carnaval de São Paulo como patrimônio imaterial, explicando o que significa uma ala de baiana, uma ala de passistas, etc. Fizemos uma plotagem mostrando por que a escola se organiza daquele jeito na avenida e um mapa muito legal, que faz grande sucesso, com a localização das 34 escolas de samba filiadas à Liga Independente. As pessoas poderão se dar conta de que, em qualquer lugar da cidade que ela estiver, ela encontra uma escola de samba para interagir. E a cerejinha do bolo, tem sempre uma: aos finais de semana, sábado e domingo, temos shows de samba. Muito samba, com as escolas cantando e enaltecendo a independência no repertório, com seus sambas combinados com música popular brasileira que trazem a temática da independência. Um passeio delicioso.
O Carnaval paulista foi considerado Patrimônio Imaterial do Estado de São Paulo pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), órgão de preservação do estado de São Paulo. Qual a importância desse tombamento do Carnaval paulista para o modelo de desfiles de escola de samba?
A salvaguarda da nossa cultura, a proteção das nossas raízes, a proteção da nossa história. Lutei muito por esse reconhecimento – foram três anos apresentando elementos, pois esse processo é muito complexo e criterioso. Entregamos material e passamos por sabatinas para comprovar que o Carnaval faz parte da sociedade, ele nasce e transforma, está tão entranhado na comunidade que é um patrimônio. Geralmente, as pessoas falam que o Brasil é o país do futebol e do Carnaval. Não faz sentido se a personalidade do país ter isso intrínseco nela se não preservar o Carnaval como patrimônio. É a nossa musicalidade, nossa múltipla arte, nossa expressão mais plena e independente. Para o Carnaval de São Paulo, foi um marco porque nos dá a tranquilidade da salvaguarda e da proteção. Costumo explicar assim para os meus parceiros: patrimônio é algo que você deseja que os seus netos e bisnetos tenham acesso. Você cuida com carinho para que todas as gerações futuras possam usufruir daquilo. Então o Carnaval de São Paulo agora se sente protegido pelo Estado, com a tranquilidade de que as próximas gerações poderão usufruir de suas riquezas.
No final de setembro, o governo de São Paulo assinou uma portaria viabilizando uma parceria com as escolas de samba do estado, que prevê um aporte de R$ 2,3 milhões. O que representa essa parceria e como será empregado esse dinheiro?
Para nós, da Liga, é uma parceria muito importante porque estamos vindo de uma pandemia que deixou muitas sequelas. Ficamos dois anos praticamente parados. Recuperar toda a classe artística e toda a categoria que move essa economia criativa de pé novamente não é fácil. O apoio do governo nesse momento é fundamental. No ano passado, fizemos um projeto de transmissão de 34 shows digitais, quando não tínhamos permissão para desfilar presencialmente. Então essa parceria é uma continuidade desse início de recuperação. Quanto à aplicação, grande parte desse projeto da mostra foi estruturado com esse recurso. Quando digo grande parte porque lógico que um valor desse se ramifica: montamos essa exposição, que tem quatro meses entre pré-produção e produção. A área onde a mostra é montada ocupa 2 mil metros quadrados e 18 metros de altura. Para montar uma exposição desse porte mobilizamos uma mão de obra pré-operacional muito grande, entre 100 e 120 profissionais, envolvemos todas as escolas na produção de alegorias, na produção das fantasias que ornamentam os ambientes, trouxemos artistas para fazer a pintura de alguns dos espaços. A maior parte desse valor foi empregado na mão de obra artística, na contratação de pessoas, na revitalização desses artistas que trabalham com Carnaval. Tivemos o cuidado, da parte do consumo de produtos, para que tudo fosse comprado em São Paulo, para que o retorno, incluindo geração de impostos, ficasse na nossa praça, para que isso vire um círculo virtuoso. Estamos fazendo também um trabalho muito grande de divulgação, de resgate do Carnaval como mola propulsora da economia criativa, atraindo turismo, fortalecendo laços não só com a capital, mas com o interior e o restante do país. O valor, portanto, foi empregado em diversas frentes, que estão resgatando o equilíbrio da economia criativa e do Carnaval e das sequelas após a paralisia da pandemia.
As escolas de samba e os desfiles exigem o ano inteiro de trabalho. Quantas pessoas movimentam esse setor da economia criativa, em termos de geração de emprego?
A Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo engloba 34 agremiações que desfilam no Anhembi. O Carnaval acaba em fevereiro e, em março, já estão desmanchando os carros alegóricos e fantasias para reciclagem de material. As escolas trabalham muito com reciclagem, porque além de os materiais serem caros – falamos há pouco do luxo das fantasias –, temos um compromisso ambiental de reciclagem e aproveitamento desse material. Portanto, em março já se começa o Carnaval seguinte. Depois temos a seleção do enredo, gravação desse samba-enredo, ensaios de quadra, desenhos de croquis de fantasias e carros alegóricos, depois a produção… Durante o ano, cada escola trabalha no mínimo com 100 profissionais o tempo todo. No fluxo contínuo chega a 4 mil profissionais. No Carnaval em si, quando trazemos todos os demais profissionais para finalizar o espetáculo, alcançamos entre 10 mil e 12 mil empregos diretos. Isso porque o Carnaval movimenta também bares, hotéis, comércio, bem dentro da proporção da economia criativa – cada real empregado retorna para a comunidade e para a cidade. Ao longo do ano, toda escola de samba tem uma parte social muito forte que nem sempre lembramos de divulgar. Tem escola com ala para pessoas com deficiência, algumas trabalham como centros de fisioterapia em seus ambientes – têm cavalo para cuidar de crianças com Síndrome de Down, por exemplo. Todas têm oficinas de mestre-sala e porta-bandeira, ou seja, perpetuam a arte do Carnaval. É tanta gente, seja inserida na criação do evento ou nas atividades do dia a dia da escola, que é difícil mensurar. Posso assegurar que o Carnaval tem uma força muito maior do que é visto na telinha da TV.
Você acredita que o Brasil é um país independente?
Pergunta difícil…Na minha opinião, a independência é uma construção contínua. Não existe a independência como algo estanque, “agora somos independentes e acabou”. Não é bem assim. Com a evolução dos tempos, sempre existirá algo do qual você quer se tornar independente. Sempre há uma insatisfação, o que vejo como extremamente saudável para não se acomodar. Não dá para colocar um ponto final na independência, ponho uma vírgula. O que nos motiva é a luta de buscar algo novo. Hoje em dia queremos ser independentes do preconceito, da exclusão. As mulheres querem ser independentes dessa visão estereotipada de não ter espaço. Há sempre uma busca pela independência. Aquece meu coração pensar que a independência é uma construção que vamos sempre levar adiante. Sempre como uma obra inacabada, porque isso me motiva, me dá gás para lutar por algo novo, reunir pessoas. Pode ser uma visão romântica minha, sou otimista. Gosto de lembrar de quem lutou e de lutas de 200 anos atrás e que não cabem mais no formato que foram, mas estão aí – a luta pela moradia, para acabar com as fakes news. São muitas independências e muitos momentos. Por isso acho que é uma construção contínua. E o Carnaval gosta muito de fazer parte da história, de estar perto dessa construção das transformações sociais.