‘O caráter incompleto da abolição e tendências autoritárias na sociedade brasileira são fantasmas que ainda estamos lutando para superar’, afirma a historiadora Hebe Mattos

A abolição da escravatura se deu no dia 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Mas para que ela fosse efetivada, muitos trabalharam por décadas no movimento abolicionista, entre eles o baiano André Rebouças, um dos pioneiros da engenharia civil e um dos principais intelectuais negros do país. Ainda assim, ele não ficou satisfeito com o desfecho desta história, já que definia que a abolição ainda estava ‘incompleta’, já que não amparou civilizadamente os escravizados, com direito à terras e indenização, que eram alguns de seus pleitos. Liberal monarquista, era a favor da modernização do país.
Muito do que ele pensava após essa fatídica data, mais precisamente enquanto estava em exílio – foi embora do Brasil junto com a família imperial na ocasião do golpe militar que culminou na República -, está no livro que acaba de ser lançado Cartas da África: Registro de Correspondência, 1891‐1893 (Chão), organizado pela historiadora e professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, Hebe Mattos. Na obra, baseada em seus diários, ele reflete sobre as relações políticas tanto no Brasil quanto na África, onde passou 14 meses, e permite um passeio em seus pensamentos que estavam à frente do tempo.
Hebe conversou com exclusividade com a Agenda Bonifácio e detalha de onde veio a inspiração política de Rebouças, os entraves que ele enfrentou ao longo da vida por defender a causa abolicionista e os demais volumes que devem sair em breve sobre as missivas do engenheiro baiano. Confira:
André Rebouças teve um papel importante na nossa história. Para quem não conhece, quem foi ele?
É um engenheiro brasileiro, grande líder abolicionista, um homem negro, de família já livre. O pai dele é um herói da independência, se tornou advogado autodidata, foi deputado geral no império, um homem importante na política dos primeiros anos da emancipação brasileira. A mãe é de uma família de comerciantes, baiana, mulher livre de classe média. São três filhos engenheiros, dois conhecidos, pioneiros na engenharia no Brasil, André e Antônio Rebouças. Este segundo fez obras muito importantes no Paraná, em São Paulo, mas morreu cedo, aos 35 anos, e André vive mais e vai ser além do grande engenheiro e um homem completamente pioneiro de iniciativas empresariais. Esteve junto com (Barão de) Mauá na área de estradas de ferro e portos, mas também foi um importantíssimo líder abolicionista, um pensador social de primeira linha do Brasil.
Você falou do pai dele, que participou de revoluções que incitaram a independência do Brasil. Qual foi a participação dele neste sentido?
Antônio Rebouças (1798-1880) participou, sobretudo, da luta pela independência da Bahia. Vai se contrapor junto com a Câmara Municipal, sai de Salvador. Foi uma figura importante na independência, escreveu várias proclamações, foi junto com a Câmara da cidade de Cachoeira à frente de uma série de iniciativas. É considerado um dos heróis, junto a outras pessoas, desse processo que é uma data festiva até hoje, quando vai acontecer a vitória militar dos brasileiros em 2 de julho de 1823. Ele e seus dois irmãos, um médico e outro que é maestro, participam dessa luta. A partir daí ele vai se tornar um parlamentar importante, vai ser eleito na primeira legislatura brasileira, ocupa cargos importantes – será secretário do Presidente da Província do Sergipe -, será jornalista importante e se destaca como jurista. Já atuava como rábula, um estudioso de direito, passou a ser reconhecido como um dos maiores especialistas. A última eleição dele foi na década de 1840, depois se dedicou à carreira jurista.
E essa atuação política se refletiu também no André, porque como você já disse foi um grande líder abolicionista. De que maneira ele atuou neste sentido?
O pai se torna conselheiro do imperador, frequentava as elites políticas desde o tempo das regências e por todo segundo reinado. Neste sentido, os filhos também circulavam na corte. Tanto pai quanto filho sempre foram pessoas que se colocaram na luta contra o tráfico de escravizados. A independência se faz com o compromisso de interromper isso e tornou essa prática ilegal, mas ela continua até muito tardiamente. Ele vai ter um combate grande neste sentido e faz uma das primeiras propostas de uma abolição gradual. Junto com José Bonifácio, Antônio Rebouças também vai propor o projeto de liberdade das crianças nascidas de ventre escravo e uma abolição gradual a partir da auto compra, que não foi sequer discutida, mas ele tem essa proposta. Isso vai marcar o filho, que tem uma relação forte com ele, com a ideia abolicionista. Ele sofre, obviamente, preconceito de cor nessa sociedade onde continuam entrando centenas de milhares de africanos escravizados, de forma ilegal. Há um comprometimento na vida do André Rebouças com isso, mas ele está nas primeiras causas, discussões abolicionistas, mas isso vai se intensificar muito a partir dos anos 80. Tem frustrações nos seus projetos empresariais nos anos 70, era concessionário de serviço público, está na construção das Docas Pedro II, tinha uma série de projetos e até pelos conflitos com as oligarquias, perdeu a maior parte dessas concessões. Vai para Inglaterra onde trabalhou por meses, volta em 82 e se engaja com muita força na campanha abolicionista que naquele momento se acelera com dois pontos fundamentais. Um deles era a ilegalidade, porque o grande argumento a favor da escravidão no século 19 era o direito à propriedade. Por mais que isso soe estranho, naquela época era, tanto que a maioria das abolições foram feitas com indenização aos proprietários e não aos escravizados, mas no caso do Brasil, o que o movimento abolicionista dizia era que era tudo contrabando. A maior parte dos africanos escravizados a partir de 1828, quando os tratados com a Inglaterra se fazem, e em 1831, com a primeira lei que se fez, tinham chegado os escravizados ilegalmente. A primeira proposta da Lei dos Sexagenários (de 1885, que libertou os escravizados com mais de 60 anos) era sem indenização (para os proprietários). Eles (abolicionistas) são derrotados em 1885 e o gabinete liberal é substituído por um que faz lei com indenização e repressão muito grande no movimento abolicionista. André é muito importante também na organização do movimento enquanto organização dos comícios que faziam em teatros, com apresentações, ele é muito amigo de José do Patrocínio, compadre dele, estão juntos. André faz uma ponte entre o abolicionismo mais parlamentar, é amicíssimo de Joaquim Nabuco, e ao mesmo tempo estava no dia a dia da Confederação Abolicionista, no jornal do Patrocínio, organizando as conferências em que se fazia o movimento. Vai ser uma figura realmente protagonista do movimento que é extremamente importante nos anos finais. Com a derrota de 85 se recolhe um pouco, mas nos anos finais o processo de fuga dos escravizados que já crescia vai se acelerar com o apoio subterrâneo do movimento e ele escreve isso no seu diário. Vai até Petrópolis em 1887 e está lá no momento que o gabinete cai, é destituído pela princesa regente, é nomeado um novo gabinete que propõe a Lei Áurea (1888), que vai abolir a escravidão sem indenização para os proprietários ainda que não contemple também nada para os libertos, coisa que André Rebouças propunha, como a política de doação de pequenos lotes de terra, além de investimento na educação dos recém-libertos como forma de reparação.
E grande parte disso estava escrito nos diários dele que vai ser lançado em livro, dividido em edições. O que será publicado agora?
A vida toda ele manteve um diário. Parte estava na Fundação Joaquim Nabuco, outra tem transcrição não publicada, que é possível o pesquisador acessar. Dos anos abolicionistas fiz um primeiro trabalho de transcrição, mas ainda não foi publicado. Venho trabalhando no André depois da abolição, no exílio. Ele se torna cada vez mais próximo da família imperial, quando morava em Petrópolis, se aproxima da princesa Isabel e Conde D’eu, fica muito admirador da coragem dela de destituir o gabinete conservador. E ele realmente acredita na possibilidade de completar a abolição, que era importante fazer a democracia rural, criar imposto sobre a propriedade fundiária e algum tipo de política de pequenas propriedades. Não só era a favor de atrair imigrantes como pequenos proprietários, como também a população brasileira e recém-libertos. Acreditava no que ele chamava de ‘projeto de democracia rural’ e na possibilidade de fazer isso depois de maio de 1988. E ele atribui o golpe republicano ao que ele chama de republicanos do 14 de maio, porque boa parte dos antigos proprietários escravistas aderem à causa republicana depois do 13 de maio (data de assinatura da Lei Áurea). Claro que a República foi mais que isso, havia todo um movimento anterior, o próprio José do Patrocínio vai apoiar porque sempre foi republicano. Vai haver uma disputa até a Constituição de 1891 e, depois dela, vão ser anos muito conflagrados, de momentos de verdadeira guerra civil, mas André Rebouças considera que foi um golpe reacionário, uma república escravocrata, que no fundo queria barrar a continuidade das reformas, ele tinha parte de razão nisso. Ele segue para o exílio com a família imperial, fica em Portugal, depois vai para Cannes, e após a morte do imperador, ele que sempre escreveu dia a dia, que vamos publicar em volumes. A ideia é que para você ler o escrito dele, para ficar interessante para o leitor, além de um posfácio é interessante que recorte um contexto. E o que estou começando, me aprofundei nos escritos dele, foi quando decidiu fazer uma viagem de circunavegação do continente africano. Ele vai no que chama de uma missão científica e filosófica e passa quase 14 meses. A ideia era ir para Angola e estabelecer caminhos de ferro e a cultura do café em pequenas propriedades. Mas ele nunca chegou lá. Passa um tempo em Moçambique, depois vai para Barberton, nas montanhas da África do Sul e depois para Cidade do Cabo. André sempre foi um liberal, que acreditava na igualdade da raça humana, o pai tem uma militância anti-prejuízo de cor, palavra que ele usaria, que marca a trajetória da família, mas ele sempre tinha uma chave universalista. Fica no exílio e nesse momento da viagem cada vez mais se mencionar como ‘negro André’, ‘André de coração africano’, e se nomeia assim em cartas. Já tinha escrito um artigo sobre a África onde vai encontrar as realidades de lá, vai se decepcionar com as possibilidades civilizadoras da ação europeia na áfrica. Ao mesmo tempo, sempre fala do Brasil, tentando influenciar o contexto daqui, desesperado com a guerra civil. Começamos o livro pelas cartas da África, com pensamento racial que acaba guardando enorme atualidade, e também lida com o contexto de crise de legitimidade democrática, porque o problema dele com a república é o caráter de golpe militar no sentido reacionário, e a tentativa de influenciar a reconstitucionalização. São textos que guardam atualidade muito interessante, onde está triste, ressentido. Tem um lado de fofoca de época que acho super interessante. Fiquei tentando identificar quem é quem nas cartas. A intenção é publicar também os anos abolicionistas, já estou trabalhando no volume. A ideia seriam dois – primeiros anos até a derrota do projeto da Lei dos Sexagenários sem indenização e depois o contexto que leva à abolição incompleta. Também vamos publicar o diário da Europa e dos últimos anos de vida, em Funchal, na Ilha da Madeira, onde fica até 1898, quando é encontrado morto, caído de um penhasco. Há toda uma polêmica e termino meu pósfacio dizendo que ele não deixou carta de suicídio. Estava, sem dúvida, enfraquecido, deprimido, mas acho que a hipótese mais provável é que ele tenha tido um mal súbito e caído naqueles muitos penhascos onde escolheu para passar seus últimos anos.
Em uma das cartas ele coloca 15 de novembro de 1889 como ‘o início da expiação do Brasil’. Por que ele tinha razão?
Não sei, mas ele percebia no sentido reacionário antidemocrático do golpe republicano, um golpe escravocrata de uma maneira muito forte. Achava que era o caso principal e que o Brasil, com isso, tinha entrado em um processo que só melhoraria no final do século 20, quiçá no 21, que é quando finalmente ele está sendo publicado para um público mais amplo. De alguma maneira ele fala com nosso século 21, o quanto uma esperança, mais do que a república em si, o caráter incompleto da abolição. A frustração dele com o caráter escravocrata da primeira república, na verdade havia ali uma negociação, uma série de compensações aos ex-senhores acabou sendo feita, o grupo dos cafeicultores paulistas acabou predominando. Menos a república e mais o sentido de reforma inacabada da abolição sem complemento de ações, de democratização que ele percebia necessárias. Neste sentido ele tem certa razão. Sem dúvida havia ali uma tendência autoritária no golpe militar, que vai permanecer como uma marca na república brasileira, e esse é um dos pontos que ele abominava, além da incompletude das reformas abolicionistas do ponto de vista de acesso à cidadania. Deste ponto de vista ele tem uma atualidade. O texto guarda certa qualidade que a mim impressionou e espero que o leitor goste de acompanhar.
E que certamente se ele escrevesse hoje estaria registrando as mesmas coisas…
A mesma coisa não sei, mas alguns dos problemas ainda vivemos, sem dúvida. O caráter incompleto da abolição e tendências autoritárias na sociedade brasileira são fantasmas que nós ainda estamos lutando para superar.
Você acha que o Brasil é, de fato, independente?Acho que sim, sou daquelas que acreditam que isso acontece desde 1822. Ali é o nosso primeiro estado nacional, agora a questão é ‘quem são os brasileiros?’. Um estado independente é aquele que tem uma constituição e se afirma assim. Ele nasce como uma monarquia liberal escravista altamente oligárquica e acho que a grande questão do estado nacional brasileiro é ele realmente ser algo que represente todos os brasileiros. Menos a questão da independência e mais quem são os cidadãos que esse estado representa. A Constituição de 1988 fez duas coisas interessantes em relação a esse contexto: o voto, que pela primeira vez você construiu uma cidadania política verdadeiramente universal e, em segundo lugar, houve um plebiscito monarquia e república (1993), que corrigiu o pecado original, com a república construída a partir de um golpe militar. Somente em 1988 isso é corrigido. Gosto muito desses dois pontos, ela nasce com o compromisso de garantir dignidade a todos os cidadãos brasileiros. Neste sentido as questões têm continuidade, mas nós avançamos. Talvez o Rebouças tivesse razão, precisávamos esperar o século 21 para conseguir ter possibilidades reais de efetivar alguns de seus ideais. Com certeza o compromisso visceral com a democracia e com o estado nacional inclusivo de todos os brasileiros é muito fundante no pensamento de André Rebouças.
(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)
Publicada em 21 de dezembro de 2022