‘O Brasil tem de conquistar sua independência a cada dia’, afirma o bisneto da princesa Isabel, o fotógrafo e empresário Dom João de Orleans e Bragança

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Dom João de Orleans e Bragança leva no nome, sobrenome e sangue a descendência nobre. O bisneto da princesa Isabel, no entanto, não se coloca acima de qualquer cidadão comum por conta de seus antepassados reais, que estiveram à frente do país em um momento determinante para nossa história. Pelo contrário. “Sou igual a todo mundo, nascemos iguais e morremos também. Dom Pedro II tinha muito essa postura, muito cidadã, democrática.” E foi do último imperador do Brasil que ele herdou também, além do DNA, a paixão em registar imagens por trás das lentes de uma câmera fotográfica, já que tomou a prática como profissão. “Minha paixão pela fotografia não é só por ela, mas é por retratar o nosso país, com suas características ambientais, sociais, culturais, étnicas”, justifica.

A Agenda Bonifácio conversou com o João Príncipe, como é chamado pelos mais próximos, que já foi surfista em Ipanema na juventude e hoje é empresário na região de Paraty, local onde circula com certa frequência. O ‘herdeiro real’ fala sobre o momento conturbado que o país vive, 200 anos depois da emancipação de Portugal, da necessidade de rever o sistema político vigente e clama por um grito urgente que os brasileiros têm de dar em busca de mais igualdade social. Confira, a seguir, a entrevista completa:  

São 200 anos desde que o Brasil se separou de Portugal. Como você analisa essa efeméride no contexto em que o país vive?

O Brasil e o mundo estão vivendo um momento muito delicado, em matéria de democracia, crise climática, de desastres ambientais, de guerras que estamos vendo em uma Europa tida como o continente mais civilizado da atualidade. Também vemos uma desigualdade social que não é só no Brasil, mas no mundo. A daqui é vergonhosa, mas há uma desigualdade de renda e social no mundo brutal. Você compara os países ricos com a África, vários países da América Latina, alguns lugares da Ásia. É um momento muito delicado nestes nossos últimos anos. 

E para você o que representa essa efeméride hoje? O que há para celebrar nestes 200 anos da emancipação política do país?

É um momento de reflexão antes de tudo. Estou preparando uma fala para o dia 7 de setembro que diz que a gente tem de conquistar nossa independência a cada dia. Foi uma independência formal de Portugal, importantíssima para nós. Éramos uma colônia, naquele momento as cortes portuguesas, que era o parlamento português, os deputados, queriam anular várias conquistas de Pedro I junto com José Bonifácio e um grupo enorme de pessoas que lutaram pela independência, em todas as regiões do Brasil. As cortes queriam acabar com esses avanços democráticos para a época. Foi convocada uma constituinte para fazer uma Constituição Brasileira e aquilo era inadmissível pra uma colônia. Nunca existiu isso em nenhum país colonizado pela Inglaterra, França, Espanha. Então foram avanços que o Brasil teve até 1822 e as cortes queriam anular. Essa foi uma das gotas d ‘água para o movimento final de independência, que culminou no 7 de setembro. Mas repito que o Brasil tem de conquistar sua independência a cada dia. A gente não pode se considerar um país independente com a desigualdade que vivemos, com o racimo que vemos até hoje, resultado da escravidão que deixou uma ferida aberta, além da falta de educação e saúde básica para grande parte da população brasileira. São chagas, feridas, que a nossa sociedade não pode aceitar. Tivemos 200 anos, éramos para ter avançado muito mais, mas acho que a nossa independência virá cada dia mais com a luta de todos por mais igualdade, mais direitos de cidadão, mais equilíbrio na nossa política. Passamos por um momento de briga, de polarização política que é péssima para a democracia. Acho que temos um longo caminho pela frente. 

O que é, de fato, ser integrante da família real? Ser integrante dela difere em algo do cidadão comum em direitos e deveres?

Essa pergunta é muito boa, porque muita gente fala: ‘como o senhor se sente como príncipe?’. É uma tradição me chamar de príncipe. Sou igual a todo mundo, nascemos iguais e morremos também. Dom Pedro II tinha muito essa postura, muito cidadã, democrática. Digo o seguinte: onde existe parlamentarismo ou monarquia, são países altamente desenvolvidos da Europa, como Suécia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, o próprio Japão. É uma forma de governo onde os representantes do Estado, o rei e a rainha, têm deveres profundos, constitucionais em relação ao seu país. E têm uma educação desde pequenos a servir ao país sem querer nada em troca, por puro civismo e amor a onde foram educados. Como nós não vivemos num parlamentarismo, estamos no presidencialismo, e muito menos a monarquia existe, mas temos a tradição de muito respeito ao Brasil. Temos muito senso de que a sociedade tem de ter diálogo, tem de ser tolerante, a diversidade de opção sexual tem de ser respeitada, a opção religiosa também, a diversidade de opção política, seja de centro, esquerda ou direita também. E tem de haver diálogo, porque sem ele a nossa sociedade não vai andar. E não está havendo isso hoje. A nossa postura é de muito respeito ao Brasil e principalmente que qualquer líder do país, seja rei, presidente, deputado, vereador, tem de ter dignidade. Não vemos isso em grande parte da classe política hoje. Aliás, não tem dignidade nenhuma.  

A história tem sido revista de diversas formas, mas existem ‘caricaturas’ que são feitas destes personagens, como é o caso de Dom Pedro I mulherengo, Dom João VI um comilão, e etc, e de situações que marcaram a trajetória do país. Como definiria essas personalidades, principalmente no papel que assumiram?

A república, quando todo mundo fala em proclamação, não houve, isso não existe. Hoje em dia fala-se em golpe da república, um golpe militar. Não foi uma revolução popular, não foi o povo que queria a saída de Dom Pedro II. O povo adorava ele e também a princesa Isabel. Houve um golpe militar, da elite latifundiária, dos fazendeiros que não se contentavam com o fim da escravidão, sem indenização. Então foi um golpe militar feito pela elite e pelos militares. Infelizmente, porque se a república tivesse vindo para o Brasil democraticamente, certamente ela não teria nascido torta. Ela já nasceu com o ‘centrão’, este que governa o Brasil hoje, governou no passado e certamente o fará no futuro, não importa se é de esquerda ou direita. Era o centrão que já existia na elite latifundiária na época do império. O próprio Dom Pedro I teve dificuldade para aprovar as leis que achava pertinente porque os deputados constituintes em 1823 já eram representantes da elite rural brasileira. Então vejo nosso momento como muito delicado, porque não adianta mudar de presidente se a política continua mais ou menos a mesma. É só ver que o centrão apoiou o governo do Lula e apoia o do Bolsonaro e vai apoiar o próximo governo. Estamos andando de lado. Melhora um pouco com um, piora com outro. Teríamos de ter uma ruptura legal, democrática, para mudar esse modelo que vivemos. Não podemos conviver em um estado que gasta 5 bilhões de reais para as eleições nas quais os caciques políticos dos partidos são quem decide quem vai se eleger. O Brasil não vai mudar nunca, porque são os mesmos caciques que passam de pai para filho. É uma monarquia absolutista. Hoje o nosso congresso é parecido com uma monarquia absolutista que se perpetua e o Brasil não vai mudar dessa forma. 

Você herdou uma paixão de Dom Pedro II, que é a fotografia. Escolheu ela como profissão, entre outras atividades que faz, e chegou a acompanhar tribos indígenas, que retratou em alguns momentos. Qual a dívida histórica dos portugueses e brasileiros com os povos originários?

Estive no Xingu há 44 anos para fotografar. E a minha paixão pela fotografia não é só por ela, mas é por retratar o nosso país, com suas características ambientais, sociais, culturais, étnicas. E fiquei muito impressionado com a cultura indígena, principalmente com os valores éticos deles. O respeito que têm uns aos outros, e a gente chama de ‘sociedade primitiva’. Não é. Pode ser que tenham necessidades de avanços tecnológicos, materiais, mas sociais, éticos e humanos eles são muito ricos. Quando se fala em descobrimento do Brasil sou um dos primeiros a dizer que não foi descoberto, mas invadido. Talvez seja uma maneira um pouco dura de falar, mas existiam moradores no país que eram povos originários, expropriados de sua cultura, das suas terras, como houve no mundo inteiro. A própria Europa foi invadida pelos bárbaros, os romanos invadiram metade do continente. A história do mundo é a da lei do mais forte contra o mais fraco, infelizmente. Até hoje, quando falamos em democracia, quem manda mais é aquela que tem dinheiro, poder econômico. Os portugueses, quando chegaram no Brasil, fizeram o que a colonização faz, como os ingleses nos Estados Unidos, os espanhóis na América espanhola. A visão que Dom João VI teve do Brasil como colônia, essa sim foi bastante diferente do que outros países colonizadores tiveram. Ele talvez tenha sido o arquiteto da independência, porque quando veio para o Brasil, quando Napoleão invadiu Portugal, fez diferente de todos os reis da Europa: foi para colônia. Todos os outros ficaram sujeitos a Napoleão, presos ou aliados dele. Dom João foi o único, conforme Napoleão escreveu no seu diário, ‘que escapou’. Essa visão de futuro, de nação, de não olhar o Brasil como território a ser tirado das riquezas quanto pudesse, foi muito importante para que a independência acontecesse naquele momento. Principalmente para que o Brasil tivesse o tamanho que tem hoje, maior que Estados Unidos, grande parte da Europa junta. Isso nos deu uma unidade territorial importante até hoje. O que nós precisamos e não tivemos ainda é uma igualdade de oportunidade para toda população brasileira, principalmente da população negra, igualdade para os indígenas. Mas, hoje em dia, o que é um bom sinal, os próprios brasileiros veem como importante toda essa assimilação pela sociedade. Porque todos temos direitos iguais e por isso temos de ter oportunidades iguais. 

Alguns contestam o papel da Princesa Isabel na questão da abolição. Como você vê a atuação dela nesse sentido?

Sempre digo que a princesa Isabel foi uma das abolicionistas. Não adianta querer apagar a figura dela, porque ela lutou pelo fim da escravidão. Com Joaquim Nabuco lutou, como Luís Gama, os dois irmãos Rebouças, José do Patrocínio. E como uma enorme quantidade de pessoas na época, que fizeram talvez os movimentos civis mais importantes da história brasileira, que foi a luta abolicionista. Ela como princesa regente não podia mudar a constituição, tinha de passar pela votação dos deputados. E a quem os deputados deviam obediência? Aos fazendeiros proprietários de terra. Ela e Dom Pedro II, para dar exemplo, não tinham escravos. E tinham amigos negros, como André Rebouças, formado em engenharia, que se auto-exilou quando o golpe da república veio. Ele não entendia como estavam exilando um dos maiores humanistas do seu tempo, que era Dom Pedro II. Só que o pai e a princesa Isabel não tinham força para acabar por si só com a escravidão. Quando a princesa votou a lei da abolição final, no 13 de maio, vários jornais apoiados pelos fazendeiros disseram que foi uma traição à nação. Principalmente porque não havia indenização dos donos de escravos. Acho que é uma mediocridade histórica dizer que ela não teve participação e a outra mediocridade é dizer que só ela lutou. Não, ela foi uma das pessoas que lutaram. 

Li uma declaração sua em que disse que Dom Pedro II era um democrata e que você herdou isso dele. Como exerce essa democracia no dia a dia e qual é a importância dela às vésperas de uma eleição tão importante?

Uma vez o professor Darcy Ribeiro, que era uma liderança de esquerda, me disse que Dom Pedro II foi o maior progressista do seu tempo. No sentido de moderno, muito adiantado para sua época e principalmente em relação a todas as repúblicas sul-americanas espanholas. Tinha liberdade de imprensa na época dele, para você ter uma ideia, coisa que não existia na América espanhola, mesmo independente. Porque eram os generais que dominavam em geral os países e ninguém queria oposição. Dom Pedro II era absolutamente a favor e lutava para que não houvesse nenhuma restrição à liberdade de expressão de jornais, nem política. Cada um podia se manifestar da forma que quisesse. E isso era muito raro naquela época. Ele era muito avançado em termos de direitos sociais, de visão de um país moderno, que caminhava para a democracia. Tanto é que não tolerava a escravidão. Numa democracia não se pode ter isso, como em um país independente. Era uma luta árdua, porque os deputados, a maioria, eram eleitos pelo voto censitário, por pessoas da classe média e alta. Na Suíça, um dos países mais democráticos do mundo, em 1960 a mulher ainda não votava. A luta pela igualdade de direitos, tanto de classes, de raça, de sexo,  é uma luta que dura até hoje. Os salários de mulheres não são tão bons quanto dos homens, dos negros não são iguais ao dos brancos, é uma luta que não vai parar nunca até que seja igualada todas essas injustiças. Repito que a independência é contínua. 

E o que você acha dessa ideia do governo federal de trazer o coração de Dom Pedro I para o Brasil?

Os restos mortais dele já estão no Museu do Ipiranga. Imagina que ele fez a independência com 23 anos de idade, muitos garotos hoje com essa idade estão jogando videogame. Ele morreu com 35 anos, com toda essa responsabilidade de ter coordenado e liderado a luta pela independência, e ele era a única esperança para que o Brasil se tornasse livre naquele momento. Se não tivesse feito ali, o Brasil ia se tornar independente mais tarde, mas com muitos mais custos sociais e humanos. E talvez se dividisse em vários países como a América espanhola. O coração lá em Portugal foi um dos desejos dele antes de morrer, na cidade do Porto, porque foi através de lá que ele conseguiu conquistar o país e fazer uma nova constituição muito mais liberal e democrática do que já existia. O governo (federal) decidiu por isso, é simbólico, e depois volta para Portugal. Não compete a mim opinar sobre isso. 

O Museu do Ipiranga, grande marco do evento da independência, será reinaugurado no próximo mês. Foi, inclusive, uma ideia de Dom Pedro II. Para você, qual a importância de espaços como este e também dos brasileiros, conhecerem a fundo, a sua história?

Digo sempre que a gente conhecer da nossa história é saber da nossa identidade. Desde uma comunidade indígena até uma nação. Precisamos conhecer a nossa origem, o que aconteceu, inclusive para não acontecer os mesmos erros do passado. Saber o que deu certo e o que não. Conhecendo nossa história vamos ter muito mais força para tocar a vida como se deve. Através de conquistas, luta pela cidadania, por democracia. O museu, qualquer que seja, mostra conhecimento para jovens. E este tem a nossa história, a luta pela independência, que não foi fácil, tinham muitos que eram contra. Maranhão, Ceará, Pará e Piauí levaram um ano para que as tropas portuguesas desistissem e voltassem para Portugal. Dom Pedro I teve de guerrear com essas tropas para efetivar e concretizar a independência de forma total. Qualquer museu, instituição de ensino faz parte da identidade da nossa população brasileira. Acho importantíssimo. 

Soube que a Flip, em Paraty, deve celebrar o bicentenário da Independência e você geralmente participa do evento, em almoço com os escritores. Está preparando algo para este ano?

Tem quatro meses ainda pela frente, mas que bom que não vai ser mais virtual, porque é muito importante os debates que acontecem lá. É uma festa literária onde se fala sobre filosofia, sociologia, jornalismo, história e religião, é uma reunião muito importante, hoje em dia mundialmente famosa. Vai ser muito positivo voltar a tê-la presencial e estarei lá. 

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 19 de agosto de 2022

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