“O Brasil nunca foi uma nação, somos uma experiência colonial em processo”, diz o líder indígena Ailton Krenak

As comemorações do bicentenário da independência do Brasil são definidas como uma “efeméride oportunista” pelo líder indígena Ailton Krenak, de 69 anos. “Que independência é essa? Foi um príncipe português que subiu num cavalo e gritou qualquer coisa como ‘Independência ou Sorte!’, mas parece que nos coube o azar”, ironiza ele, na entrevista a seguir. Mas elogia José Bonifácio (1763-1838), o patriarca da independência: “Bonifácio achava que as terras que os povos originários habitam ou habitaram deviam ter o mesmo direito de propriedade (dos brancos), que não poderia ser violado. Acho essa posição mais avançada do que tudo o que veio depois.”
Com sua língua afiada, Ailton Krenak é mais que um ativista, ambientalista, jornalista, produtor gráfico, professor universitário, escritor e líder indígena – é um dos pensadores mais respeitados, dentro e fora do país, da atualidade. Nascido numa aldeia da tribo Krenak na região do Médio Rio Doce, em Minas Gerais, mudou-se com a família durante a adolescência para o Paraná, onde foi alfabetizado apenas aos 18 anos. E não parou mais. Krenak teve atuação importante durante a Assembleia Nacional Constituinte, participando da redação do capítulo da Constituição Brasileira de 1988 que assegurou direitos fundamentais às comunidades indígenas. Ajudou a criar instituições como a União das Nações Indígenas e a Aliança dos Povos da Floresta.
Por seu trabalho, Krenak foi agraciado com diversas comendas, entre elas o Prêmio Internacional de Direitos Humanos para a América Latina e o título de Professor Doutor Honoris Causa de duas universidades: da UnB, de Brasília, e da Universidade Federal de Juiz de Fora. Autor de vários livros, traduzidos para o inglês, francês e alemão, Krenak dirige atualmente o Núcleo de Cultura Indígena, ONG localizada na Reserva Indígena Krenak, onde vivem cerca de 500 pessoas, no entorno do município de Resplendor e próximo da divisa com o Espírito Santo. Segundo ele, a recente eleição de lideranças indígenas para o Congresso Nacional foi um marco. “A república brasileira, com todas as suas idiossincrasias, agora vai ter de conviver também com pessoas tuteladas com mandato de deputado federal”, disse. “Quem sabe será uma deputada indígena que vai dar uma de princesa Isabel e escrever a carta de libertação da tutela indígena?”
Qual a sua avaliação dos 200 anos de independência do Brasil e quais são as grandes prioridades em termos de luta política dos cerca de 1 milhão de indígenas de 305 etnias que vivem no Brasil, visando assegurar não só a defesa da cultura e de seus valores como a própria sobrevivência?
Tem um ditado popular que diz que, quando alguém fazia um questionamento, o outro dizia: “Ah, mas isso são outros quinhentos”. Existe uma narrativa instituída que diz que temos 500 anos de inauguração dessa experiência colonial. Em algum momento fomos inseridos no mapa-múndi como uma dessas regiões do planeta que passaram a fazer parte do estoque de recursos que o mundo ia consumir dali para frente. O ciclo das descobertas – das Américas, da Ásia, da África — incluiu povos e territórios que passaram a integrar o que chamo de “almoxarifado da humanidade”, local onde ela vai buscar “suprimentos”. Esse almoxarifado se expandiu no século 16. Nós passamos a fazer parte de uma gaveta desse almoxarifado, onde todo mundo mete a mão. O saque colonial começou aqui há 500 anos. Às vezes, acho que se referir a um evento de 200 anos atrás, demarcando esse longo período de cinco séculos como uma efeméride por excelência, é um pouco de oportunismo. É como aquela história de puxar a brasa para sua sardinha. A sardinha, nesse caso, é dos colonizadores. Eles chegaram aqui de bota e chapéu, metendo o pé e, a partir de São Paulo, colonizaram o resto do país. Os bandeirantes têm esse “mérito”, de terem devastado a floresta, a Mata Atlântica, o Cerrado, e terem encostado sua locomotiva paulista lá nos Andes. Parabéns. Tem uma coisa chamada América do Sul, onde o Brasil está encaixado. Somos um país de língua portuguesa, mas num oceano de países de língua espanhola. Ficamos de costas para a realidade desse continente, acenando para Portugal e batendo palminha, dizendo que estamos completando 200 anos de independência. Ora, que independência é essa? Foi um príncipe português que subiu num cavalo – dizem que era uma mula – e gritou qualquer coisa como “Independência ou Sorte!”, “Nordeste ou Norte!”, uma parábola dessas que a gente nunca sabe o que o personagem da história disse, mas a narrativa depois vai ajustando, criando harmonias, até chegarmos a um carnaval monumental, com um sujeito impávido, com a espada na mão, gritando “Independência ou Sorte!”. Parece que nos coube o azar… Estamos há 200 anos nesse evento azarado, encaixados num projeto colonial que há 500 anos quer fundar uma nação – uma nação europeia nos trópicos. Todo corpo jurídico, todo o status que o Estado brasileiro se constitui, todo o establishment, é todo português. Então somos um país português nos trópicos, mas não somos uma nação. País é uma coisa, nação é outra, diferente. Ainda tem outra distinção que as pessoas omitem sempre: o Estado não é a nação. O Estado é essa superestrutura que administra, que faz a gestão – militar, política e estratégica – de um território. O território é o país. A nação seriam as pessoas em um concerto em comum de interesses. Como estamos rachados ao meio, como mostrou a eleição, que nação é essa? Sempre questionei essa história de que somos uma nação. Não tenho certeza de que D. Pedro, aquele que gritou no Ipiranga, concordava com isso, pois decidiu morrer fora do Brasil. Nunca alcançamos a inteira expressão de povo, de nação e de país. Somos uma experiência colonial em processo. Já ouvimos gente dizendo que precisamos “descolonizar” … Nós nem concluímos a primeira fase do processo, que é ser colonizado. Você mesmo disse que, só os indígenas, somam 305 etnias. São 305 remanescentes de tribos, daquelas que não viraram nação.
“Ideias para adiar o fim do mundo” é o título de um livro que o senhor lançou em 2019 e que fez grande sucesso no Brasil e no exterior. No livro, o senhor destaca a ideia da profunda desconexão do ser humano com o organismo Terra, provocando reflexões sobre a centralidade da espécie humana. Como estamos nos relacionando com o planeta?
As ideias que estão nesse livro foram sendo desenvolvidas entre o final do século 20 e início do século 21, com uma revelação para mim de que, além das observações regionais sobre um país, uma nação, a gente precisava fazer uma reflexão sobre a ideia de que somos uma humanidade compartilhada, no mundo inteiro. Da mesma maneira que pode ser um equívoco um monte de gente radicalmente diferente, um do outro, concordar que somos uma nação, até que um dia despertem para a incompatibilidade dessa coisa toda, de pensarmos que somos uma humanidade num planeta cindido por guerras e violência inimaginável – como estamos vendo agora na Ucrânia. Antes, a gente imaginava o século 21, como humanidade, como algo próximo daquela canção do John Lennon, “imagine um mundo sem fronteiras, sem religião, sem guerras”, vivendo uma espécie de êxtase humanista. Demos com os burros n’água, viramos o século 21 com pobreza, guerras e destruição. Temos milhões de refugiados que não vão voltar para lugar nenhum. E vamos produzir cada vez mais refugiados. Aqui no Brasil temos refugiados do Haiti, Venezuela e Bolívia, de certa maneira fazendo valer a frase da canção do John Lennon, “um mundo sem fronteiras”. Mas agora não é sem fronteiras porque as pessoas foram acolhidas, mas por serem expelidas. Chegam em Londres, Paris e outros locais como se fossem bichos da maçã. Não estamos mais sendo capazes de vivenciar ecologia alguma, do corpo, profunda, que nos permite estar em algum lugar com sentido. Por exemplo: estar em Minas Gerais, na beira do Rio Doce, sabendo que uma barragem soltou lama no rio, mas que vou ficar para melhorar o rio, sem sair daqui. As pessoas estão flageladas e fugindo de tudo quanto é lugar do mundo. Tem lugar que as pessoas fogem de mísseis, em outro, da inflação. Se a gente olha o mundo nessa perspectiva, afirmar que não existe uma humanidade consensual não é nada temerário, é algo óbvio. Não somos uma humanidade, e sim uma imensa constelação de povos, com desejos e expectativas diferentes. Mas podemos continuar vivendo no planeta sem essa ambição antropocêntrica de querer organizar o mundo. A fúria de organizar o mundo é uma das coisas mais violentas que o ser humano possa ter inventado. Poderíamos experimentar a vida como os pássaros e as formigas. Hoje de manhã passou um bando de maritacas por aqui, pararam num pé de bananeira, fizeram uma farra e foram embora. Os humanos têm essa fissura por território, dominação, controle. Como já disse, somos um almoxarifado espalhado pelo planeta onde as pessoas saqueiam. A Europa, durante muito tempo, saqueou o mundo inteiro e agora está em convulsão, dando tiro no próprio pé. É uma tristeza porque, como seres que compartilham a mesma origem, espécie, poderíamos estar melhores. Costumo dizer que o ser humano deu metástase.
A sucessão de erros por parte do governo federal na condução da Funai ao longo das últimas décadas sempre foi denunciada pelos indígenas. Está na hora de repensar a relação de tutela estabelecida pelo Estado brasileiro com os povos indígenas?
Atualmente a correção política sugere chamar esses povos indígenas de originários. É muito interessante como a linguagem vai se depurando. Ao chamar esses povos de originários, estamos ao mesmo tempo recolocando uma questão fundamental – a de que havia povos vivendo aqui originalmente antes de o Estado brasileiro se constituir. Antes, portanto, de quaisquer 200 anos, há a evidência de que outros povos já estavam presentes aqui, com suas organizações sociais estabelecidas. Eles não eram uma nação ou Estado, eram etnias. Era algo muito parecido com aquilo que o senso comum entende que é uma tribo. Esses povos, na sua criatividade, conseguiram sobreviver ao pior da colonização, que foi quando os bandeirantes entraram no sertão queimando e matando. Quando os serviços de proteção ao índio criados no começo do século 20 pelo marechal Cândido Rondon foram estabelecidos, aquilo já era uma espécie de armistício em meio a uma longa guerra de ocupação colonial. E Rondon dizia que era possível conviver. O José Bonifácio, patriarca da independência, dizia que esses povos originários deveriam ser reconhecidos na sua integridade – ou seja, com soberania, no contexto do novo país. Aquela gente não tinha exército, polícia e uma série de aparatos que os civilizados precisariam ter, mas Bonifácio achava que eles deveriam ser respeitados na sua maneira de estar aqui – a república deveria garantir que permanecessem na floresta, se quisessem, da mesma maneira que asseguram o direito de propriedade. O capitalismo considera que a propriedade é a coisa mais sagrada do mundo. Bonifácio achava que esses lugares que os povos originários habitam ou habitaram, deviam ter o mesmo sentido de propriedade, que não poderia ser violada. E a república deveria proteger esses territórios e os povos que neles viviam. Acho isso uma posição muito mais avançada do que tudo o que veio depois. Como Rondon era positivista, ele achava que os povos indígenas iriam evoluir para algum lugar – o que era uma bobagem, pois ninguém tem esse tipo de disposição “evolutiva”, da mesma forma que ninguém que existe hoje vai “involuir”. Portanto, não tem sentido essas teses higienistas positivistas, embora reste uma importante observação: algumas dessas 305 etnias estão furando uma barreira histórica incomparável, colocando representantes seus em alguns dos aparelhos da República. Na atual eleição, foram dezenas de candidaturas indígenas – não sei exatamente quantas, pois não tenho esse tipo de engajamento, costumo dizer que faço micropolítica. A república brasileira, com todas as suas idiossincrasias, agora vai ter de conviver também com pessoas tuteladas com mandato de deputado federal. Vai ser o que se chama de um paradoxo. Lembro quando o único e primeiro indígena, o Mario Juruna (1943-2012), foi eleito deputado por um acidente político – ele não era militante nem filiado a nenhum partido político, mas o (ex-governador) Leonel Brizola e o (antropólogo) Darci Ribeiro tutelaram a candidatura dele pelo PDT do Rio de Janeiro, apesar de o Juruna ser do Mato Grosso. Foi muito diferente do que vemos hoje, com dezenas de mulheres indígenas disputando, dentro dos partidos em que estão filiadas, uma representatividade indígena no Congresso Nacional. Muitas dessas mulheres indígenas têm a idade das minhas filhas ou até das minhas netas, e querem ter um mandato. Somos esse angu de caroço – dizem que é uma república, mas tutela pessoas que têm mandato parlamentar e fazem leis. Quem sabe vai ser uma deputada indígena que vai dar uma de princesa Isabel e fazer a carta de libertação da tutela indígena aos indígenas? Assim, se já temos um cara gritando “Independência ou Sorte!”, teremos uma indígena clamando “Destutela e sorte!”… Somos essa contradição antropológica nos trópicos ou, como disse o antropólogo francês Claude Levi Strauss (1908-2009), nós somos os “tristes trópicos”.
Uma das grandes novidades na discussão da causa indígena é justamente o surgimento de jovens lideranças, a maioria com vivência universitária, totalmente adaptada à era digital e também incorporada ao sistema político-partidário. Como o senhor analisa a atuação dessa nova geração indígena? Acredita que eles estão no caminho certo, que é importante ocupar espaços de poder, como o Congresso Nacional, ou o senhor defende outro tipo de militância?
Acho que eles estão no caminho possível. A minha geração fez outra coisa. Eu estive presente nos debates da Assembleia Constituinte, tem até uma imagem do Ailton jovem pintando o rosto de preto num protesto no Congresso Nacional. Com aquele gesto, inauguramos o capítulo dos direitos dos índios que está na Constituição de 1988. Não tinha partido político, não fui eleito deputado constituinte. Fui lá representar uma emenda popular, com 120 mil assinaturas no Brasil inteiro, que me deram dez minutos de fala. Aqueles dez minutos foram suficientes para inserir na Constituição esses princípios que estão sendo cobrados hoje – que é o reconhecimento dos direitos dos indígenas de viverem nos seus territórios de origem. É quase que um haicai. É simples assim: “Povos originários vivendo em territórios de origem” e pronto. Mas apareceu essa coisa de marco temporal, para tensionar, para questionar e para dizer que só é originário quem estava lá no dia 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. É briga política. Então, agora, esses jovens, esses meninos e meninas, vão fazer a parte deles. Eu podia dizer, numa boa, que eu já fiz a minha e quero assisti-los a fazer a deles….
Mas o senhor enxerga uma diferença na maneira deles de atuar?
Enxergo uma diferença fundamental: eles acreditam que o Estado brasileiro existe, que esse conceito, essa república existe, porque senão não estavam lá dentro.
O senhor ganhou projeção no meio acadêmico como um grande filósofo da causa indígena. Mas nunca se sentiu confortável em ser chamado de filósofo. Qual seria a diferença de visão de mundo de um filósofo indígena de um filósofo branco ou tradicional?
Na verdade, não tenho formação acadêmica que me atribua o título de filósofo. Essa referência ou titulação ocorreu porque ao longo de minha trajetória — 20 ou 30 anos de intervenção na vida política e cultural brasileira – passei a ser nomeado como filósofo. Mesmo quando me chamavam assim, avisava que não era um filósofo. O mesmo como escritor – não sou um “escritor”. Na verdade, parece que estou constituído num sujeito tão plural que as categorias que identificam um intelectual na cultura ocidental não cabem para mim. Sobre meus livros que fizeram sucesso: costumo dizer que não escrevi esses livros – eles foram falados. Lembro que o Caetano Veloso tem um filme chamado Cinema Falado, para não me sentir deslocado nesse ambiente. Sou um narrador, um contador de histórias. Procuro dar um sentido amplo a essas histórias que conto para que não sejam fabulações. Para que tenham forte incidência sobre um campo da realidade que outras pessoas também pensam. Inclusive pessoas que pensam de forma diferente do Ailton, que acham, por exemplo, que a Terra é plana. Aí o Ailton fala: “A Terra não é plana, a Terra plaina, consegue plainar feito um aeroplano, dança, faz movimentos em torno de si mesmo, a Terra não é plana”… O querido amigo José Miguel Wisnik (músico, compositor e ensaísta), a quem também atribuo esse dom de filósofo, costuma dizer que a Terra plaina, surfa no cosmos, mas um idiota pode achar que ela é plana. Então, neste sentido, filosofia seria a capacidade de um exercício entre algum sentido, alguma razão – não a razão lógica do Ocidente –, que nos estabelece como sujeitos capazes de pensar entre outros sujeitos, também ativos e inventivos e que não precisam ser uma cópia do humano, os não-humanos. Você pode pensar como um pássaro. O poeta Manoel de Barros (1906-2014) dizia que a vocação dele era ser uma árvore. A minha pode ser um arbusto, uma montanha. Tem uma montanha aqui na aldeia chamada Takukrak. Pelo menos por um tempo, essa montanha vai ficar eternizada num dos parágrafos do meu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, onde eu digo que a Takukrak tem humor. Em algumas manhãs, daqui do terreno de casa, a gente olha por outro lado da margem do Rio Doce e vê o semblante da montanha como um oráculo. E ficamos ali esperando ela dizer se teremos um dia maravilhoso, para sair brincando, ou se é um dia de ficar na sua. Então, a Montanha Takukrak é viva, tem humor, para nós ela tem essa existência de fato. É isso que chamo de uma certa lógica, uma certa razão de ver o mundo e olhar essa diversidade de seres vivos que não são só os humanos. Desconfio que vão acabar me considerando um filósofo da natureza – que é capaz de conversar com os rios, montanhas e pássaros, e experimentar uma existência para além do cálculo, da ideia de que a vida é alguma coisa que você começa e termina. É um entendimento de que nosso corpo é um casulo e a vida atravessa esse casulo. A vida não é minha, a vida não é sua, a vida não é dele, a vida não é de ninguém. A vida é maravilhosa porque atravessa tudo quanto é organismo que tem na biosfera do planeta Terra. Um filósofo italiano com quem ando conversando há algum tempo, de uma universidade de Paris, o Emanuele Coccia, diz no desenvolvimento de uma tese forte que ele tem divulgado que a vida opera em metamorfose. Ou seja, tudo quanto é organismo que existe na Terra já foi outra coisa ou será outra coisa. Então o sentido de eternidade da vida não é místico, não é religioso – não é budista nem cristão. O sentido de eternidade da vida é a infinitude. Ou seja, a vida é tão maravilhosa que não tem fim. Ela pode terminar, pode se encerrar, para um determinado ciclo, para uma espécie. Por exemplo: para os dinossauros, a vida acabou. Mas ela começou em outros organismos, em outros corpos. Uma pessoa maravilhosa que tenha vivido há dez ou mil anos teve uma existência casulo — em que a vida passou por ela. Mas não precisamos chorar por essa pessoa, pois a vida continua. Não precisamos agarrar o que está passando nem desprezar o que está presente. Essa é a minha filosofia. Não aprendi na escola. Tenho recebido comendas, títulos de mestre e doutor de universidades brasileiras, mas isso não muda minha observação de que sou apenas um casulo por onde a vida flui. Enquanto estiver assistindo, vai ser um barato. Depois, vai ser outra coisa.
Para encerrar, o senhor considera o Brasil um país independente?
Um país é aquela configuração que mencionei antes, que consiste num território e na gestão desse território. O Estado brasileiro faz a gestão desse território que é o nossos país. Esse país, Brasil, não tem sentido dizer se é dependente ou independente, pois vai ser sempre objeto de uma governança – que pode ser feita por portugueses, chineses, franceses, não interessa. Esse negócio de independência está dentro de uma chave histórica que é o período da colonização, dos ciclos coloniais. Quando se encerra o ciclo de colonizar novos lugares do mundo, deixa de ter sentido uma pergunta sobre a independência de um determinado país. Os povos, os países do mundo de hoje, vivem uma relação de interdependência. Se a Rússia não fornecer gás natural para o norte da Europa, os países europeus vão congelar. País independente é uma ficção, uma expressão decadente…Ninguém é independente de nada no planeta Terra. Se o clima do planeta se alterar muito, estamos todos ferrados.
(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)
Publicada em 19 de outubro de 2022