‘O Brasil é um país que não construiu a sua própria independência’, afirma o jornalista e escritor Eduardo Bueno

https://www.youtube.com/watch?v=Q_yUP121LVU?autoplay=1&;enablejsapi=1>">
Marcio Pimenta/Divulgação

Fatos históricos contados com uma linguagem leve e divertida foi a receita usada pelo jornalista e escritor Eduardo Bueno para conquistar o público que consome seus conteúdos. Tanto que além de fazer seu trabalho nas páginas de livros, jornais e na tela da TV, ele também criou o canal Buenas Ideias no YouTube, onde publica vídeos que tratam dos mais diversos períodos da história da humanidade, inclusive questões atuais, de uma forma que só ele sabe fazer. 

Bueno, que teve seus livros na lista dos mais vendidos do país e já ganhou o Prêmio Jabuti, em conversa com a Agenda Bonifácio, analisa o processo de independência do Brasil de forma aprofundada e fala que é impossível vislumbrar um futuro diferente do que vivemos sem saber, de fato, o que se passou por aqui. “Só é possível construir um país com cidadania e o que é isso? É o agente social, é você, sou eu, todos que nos cercam, tendo uma visão de país e querendo construir uma nação. E tem de fazer isso, independentemente de ser de esquerda ou direita, e quase que também de política. Não sou ingênuo, não vou fazer esse discurso antipolítica, mas ela não é apenas a partidária e nem a do Congresso, é a do dia a dia, dirigir do jeito correto, é teu comportamento como cidadão. Tanto seus direitos como os seus deveres. E o brasileiro de vez em quando se lembra de cobrar os seus direitos e de vez em quando cumpre os deveres. Qual a base disso? O conhecimento histórico. Saber o momento histórico que você vive e os que vieram antes, que vão apontar para os que virão depois. São aqueles dois chavões: povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la e povo que não sabe de onde veio não sabe para onde vai.” Confira, a seguir, a entrevista completa: 

Você começou a trabalhar a história em um tempo que ela não era objeto de interesse do público-leitor. Como foi ‘arar’ esse terreno e como enxerga hoje o interesse das pessoas em se aprofundarem neste assunto, inclusive do ponto de vista do Brasil?

Sempre fui apaixonado por história desde o fim da infância e início da adolescência. E não encontrava eco dessa paixão no colégio. Estudei na época do regime militar, adorava a história do Egito, de Roma, nem tinha uma ligação tão forte com a história do Brasil, era mais nesses sistemas clássicos. Chegava na escola e era aquele suplício, então continuava só lendo em casa. Daí comecei minha carreira como jornalista, desenvolvi as técnicas do texto, e me apaixonei pela história dos Estados Unidos, por causa do Bob Dylan, ele foi muito marcante na minha vida, uma paixão que persiste até hoje. Comecei a estudar toda vida dele, quem tinha o influenciado, cheguei naquela geração Beat e me aprofundei na história. Até que um dia andando na rua fiquei com muita vergonha de saber muito da história dos Estados Unidos, do Egito, de Roma, e não saber nada da história do Brasil, a não ser aquilo que aprendi no colégio, aquelas generalidades e simplificações. Passei a me dedicar a estudar isso, do mesmo jeito, de forma autodidata. Lendo, comprando livros, geralmente em sebos. Quando se aproximou os 500 anos do descobrimento do Brasil, era 1998 e se completaria no ano 200, disse: ‘as pessoas não sabem nada sobre isso, não sabem quem foi Cabral, como foi a viagem, quem pagou, o que comiam, como foi construído os navios, não sabem como foi o primeiro contato, embora Pero Vaz de Caminha descreva aquele momento com minúcia de detalhes, não é possível. Vou escrever um livro que não é historiográfico, com essa visão jornalística, como se fosse uma grande reportagem, que convide o leitor a embarcar nessa viagem’. Tanto é que o livro se chama A Viagem do Descobrimento. E anteriormente, entre espaços do jornalismo, tinha sido editor da L & PM, tinha colaborado com a Brasiliense, com a Companhia das Letras, sabia editar livros e como o mercado funcionava. Daí digo ‘óbvio que tem um mercado só esperando para ser abastecido com livros desse tipo’. Já tinha indícios disso por causa do Jorge Caldeira que escreveu Mauá – Empresário do Império, Fernando Morais, que fez Olga, o Ruy Castro. Mas o que eles faziam? Tratavam de temas ligados ao século 20. E eu peguei uma coisa presa no colégio, o descobrimento do Brasil, Pedro Álvares Cabral. Resgatei daquela escola tradicional, graças ao texto jornalístico. E estourou. E de fato, como você falou, abriu caminhos para outros como Laurentino Gomes, caras que escrevem hoje sobre história com esse viés jornalístico, com esse olhar. Provando que esse mercado existia e o interesse do brasileiro de conhecer a sua história um tanto desvinculada de umas amarras acadêmicas. Que são importantíssimas, não desprezo essas amarras, longe disso, os historiadores têm de se ater a historiografia. O jornalista a ele é dado uma leveza maior. E o público, em geral, tem dificuldade de ler os livros acadêmicos, e tem mais facilidade de ler livros como os meus, que se completam. Os meus, do Laurentino, do Caldeira, do Fernando Morais, são um convite para que a pessoa ao ler isso vá adiante nos dos grandes historiadores brasileiros. Sou bem feliz com isso. 

Como transformar a história brasileira, que é cheia de nuances, em algo palatável para o público?

É basicamente o olhar e texto jornalístico. Ele tem muitos predicados que é ser sintético, com lead – abertura quem, onde, como e por que -,  que facilita a entrada do leitor. E, na contrapartida das vantagens, também tem suas desvantagens, porque é, quase que por natureza, dado a generalizações e simplificações. Ele tem uma leveza e plasticidade que por um lado é uma vantagem, mas por outro é quase uma desvantagem, porque o acadêmico tem a desvantagem de ser mais pesado, amarrado, mais preso a uma estrutura, mas tem a vantagem de ser necessariamente mais analítico e profundo. Então, na verdade, o bom é fazer uma fusão entre um e outro. Ler os jornalistas que citam as suas fontes que são livros de historiadores e depois lê-los também. E não há esse confronto. E todos os historiadores brasileiros saíram em minha defesa, e do Laurentino também. Porque houve mimimi (risos), mas os historiadores mesmo, Mary Del Priore, Lilia Schwarcz, Nicolau Shevchenko, Alberto Costa e Silva, esses entenderam o que eu e Laurentino estávamos fazendo, e referendaram nossa obra. 

A independência do Brasil, que está prestes a completar 200 anos, passou por diversas atualizações do que vemos nos livros escolares, pelo menos de quando aprendi. O que, de fato, foi culminante para que o país se libertasse de Portugal?

É um processo que começa bem antes, com a Revolução Americana de 1776, que afrontou a Inglaterra. Daí vem a Revolução Francesa, de 1789, e começa um movimento ocidental de contestação ao absolutismo monárquico. Como assim o rei pode tudo? E então se inicia um movimento da sociedade civil, os cidadãos querendo defender o seu direito. É claro que de início e por muito tempo é um movimento da burguesia. As pessoas dizem ‘o povo fez a revolução francesa, a revolução americana’. Não é bem assim. São mercadores, comerciantes, burgueses, juízes, pessoas letradas que em nome do povo, e agindo por uma causa popular, em confronto contra uma nobreza absolutista ligada em torno do rei. ‘Chega! Vocês já tiveram dois mil anos no poder, agora é hora de uma sociedade civil, que trabalha, que produz, paga imposto e sustenta vocês ter voz’. E esse movimento se espalha pelo mundo. Ele chega em Portugal com a Revolução do Porto, em 1820, que lá é bem legal, porque diz ‘chega de poder para casa de Bragança’. Obriga que Dom João VI volte, porque ele tinha fugido, no lugar dele ficaram os ingleses no poder e Portugal sustentando a corte no Brasil, embora o dinheiro fosse brasileiro, mas que pertencia a eles pela ótica colonial. A questão é que a Revolução do Porto teve um lado progressista, liberal, só que queria que o Brasil voltasse a ser colônia, e isso é muito louco e as pessoas não falam disso. Dom Pedro I, ainda era príncipe regente, sempre foi meio bipolar (risos). Era uma personalidade inacreditável. Era liberal e autoritário, bondoso e violento, gentil e histérico, tudo ao mesmo tempo. Se houvesse naquela época esse diagnóstico, ele seria dito bipolar. É óbvio que tinha um viés absolutista, até porque o rei seria ele. Mas tinha um flerte com o liberalismo, porque era por um lado um cara aberto. Teve a revolução lá de Portugal, que queria libertar o país, mas era totalmente reacionária com o Brasil. E aí os brasileiros disseram: ‘não, pelo amor de Deus, vamos voltar a ser colônia?’ O Brasil já era Reino Unido a Portugal e Algarve – as pessoas também não sabem disso – era um reino com os mesmos direitos e poderes de Portugal, era um reino unido. E também não sabem que ficou assim porque em 1815, quando o Napoleão foi derrotado, teve o Congresso de Viena, igualzinho uma reunião da ONU – quando acabou a Segunda Guerra Mundial ela foi criada, para decidir como seria a nova ordem mundial. Então acabou a guerra napoleônica, que envolveu a Europa Inteira, o Atlântico, e então eles reuniram o conselho de nações em Viena. Mas só podia participar casas reais e governos que estivessem no seu próprio país. E Dom João estava no Brasil, não poderia participar. Aí ele criou o Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil. Então a família real pode participar desse encontro importantíssimo. Cinco anos depois os revolucionários do Porto queriam que o Brasil deixasse de ser isso para voltar a ser colônia. E o que também deveriam saber é que muitos brasileiros apoiaram a Revolução do Porto e teriam sido favoráveis a ela se os revolucionários não exigissem que o país retrocedesse a colônia. De início apoiaram, disseram ‘chega do poder da casa de Bragança, chega de Dom João mandando, quem vai mandar vai ser uma monarquia parlamentarista’, como é a inglesa, já era assim desde 1600 e pouco. Falei da Revolução Americana de 1776, mas na verdade essa história começa na Inglaterra, em 1693, quando pela primeira vez pessoas tiveram a audácia de enfrentar o poder real e disseram: ‘não é monarquia absoluta, no máximo parlamentarista. Onde uma Câmara decide junto com o rei’. E depois passou a decidir mais do que o rei, a Câmara dos Lordes. Gerou Estados Unidos, França, chegou em Portugal, só que eles fizeram a coisa errada. E aí Dom Pedro tinha duas opções: ou se submeter aos revolucionários do Porto ou separar o Brasil. E é óbvio que para ele e para o mundo era muito mais vantajoso a segunda opção e então o Brasil ficou independente. Se não fosse esse erro dos revolucionários, tinha muita gente que não queria separar os países, só queria que fosse uma monarquia parlamentarista. Que o Brasil continuasse ligado a Portugal, mas sem o absolutismo monárquico. 

E José Bonifácio ganhou o título de Patrono da Independência. Qual foi o papel dele de fato nessa história?

Ele foi importantíssimo, foi chave, foi brilhante. Sempre fui meio do contra. O cara diz A e eu digo B. Porque na verdade tudo sempre tem os dois lados. Digo isso porque sou um fã de José Bonifácio, mas também sou muito fã da historiadora Mary Del Priore. E ela lançou um livro detonando Bonifácio (As Vidas de José Bonifácio). Acho que ela exagerou, pegou pesado demais com o velho Boni (risos) – chamo ele assim de brincadeira até porque trabalhei na Globo e o Boni (diretor) era quase um Deus lá. E o Boni tinha um lado genial. Ontem mesmo estava lendo um texto dele sobre a preservação das baleias, que foram extintas praticamente, agora que estão renascendo. Tinha engarrafamento delas na Baía de Guanabara, de tantas que iam ali procriar, e eram mortas para gerar o óleo que iluminava a cidade. Ele tem um texto de preservação das florestas bem conhecido, num momento que estamos vivendo isso na Amazônia, com o assassinato de Dom Philips e Bruno Pereira. Ele tinha um projeto de inserção do índígena na sociedade brasileira, ao contrário de ‘certos presidentes’ que são inimigos dos indígenas. Tinha um projeto de abolição da escravatura bem concreto, até 1830 no máximo ele queria isso. Tem muitos méritos e realmente é o cara que pensou a independência e tem aquela frase maravilhosa dele, que amava a princesa Leopoldina. Bonifácio olhou para ela e falou: ‘Ele (Dom Pedro) deveria ser ela’. Disse isso quando o príncipe já estava em São Paulo e a Leopoldina e o conselho de Estado estavam mandando as cartas que resultaram na independência. É uma frase maravilhosa. Inclusive já te dei a deixa para o próximo assunto. São 200 anos, o que a gente tem de falar? O papel da mulher que foi fundamental representado pela Leopoldina, mas também pela Marquesa de Santos, que sempre entra na história como a ‘outra’, a ‘vagabunda’, mas ela era feminista. Foi obrigada a casar, com 13 anos, e o marido deu uma facada nela quando tinha 16. Ela se levantou, o denunciou e conseguiu se separar. Tem um lado heróico. Claro que se você estuda a história, qualquer um fica do lado da Leopoldina, mas a questão é que Dom Pedro deveria ter lidado com isso. É óbvio que Leopoldina não a suportava e é óbvio que a marquesa queria ficar com o príncipe. Entre eles houve paixão carnal, e o casamento de Dom Pedro e Leopoldina foi armado. A princesa descreve: ‘na nossa noite de núpcias ele me fez ver estrelas…’ Não sei se foi astronomia, mas Leopoldina disse isso (risos). Mas não era paixão, era um casamento estratégico, muito importante para o Brasil, mais do que para a Áustria. E outras mulheres: a Maria Felipa (que lutou pela independência na Bahia), a Maria Quitéria, que se vestiu de homem para lutar, meio transgênero, a Joana Angélica, a freira. Hoje a gente vê os evangélicos num papel tão conservador, reacionário, e sabemos que a igreja já teve um papel bastante progressista no Brasil. Durante a ditadura militar, dos anos 1960, foi uma igreja combativa, contra a tortura. A igreja já teve um papel progressista no Brasil, e teve na independência, representado pela Joana, mulher. E aí as outras duas questões, o índío, que continuou sendo vilipendiado, continuou tendo suas terras roubadas, alheio ao processo, embora na constituição de 1824, fruto da independência, e nos projetos do Bonifácio tivessem a incorporação do índio à sociedade. E o fundamental de tudo isso, que temos de usar esses 200 anos para refletir: o Brasil é um país que fica independente e não abole a escravidão. 

É até uma das perguntas que quero te fazer. Esse reflexo da escravidão que durou tanto tempo aqui vemos até hoje. Acredita que isso pode mudar ainda no país?

O Brasil já passava vergonha por ser escravista já em 1822. Aboliu a escravidão em 1888 quando era um párea internacional, uma vergonha, país escravista. Pense nas ex-colônias espanholas: Argentina, Colômbia, Venezuela, Peru, Chile, todos tiveram uma guerra terrível para se separar da Espanha e imediatamente viraram repúblicas, que era um modelo político muito mais avançado para época, do que continuar uma monarquia. Hoje a discussão monarquia e república é diferente. Por exemplo, Inglaterra é uma monarquia, Holanda, Suécia, e funcionam bem. São países avançados. A questão hoje não é discutir isso, mas na época, no novo mundo, só o Brasil continuou uma monarquia. E além de não virar república também não aboliu a escravidão, ao contrário desses outros todos. Ou seja, é uma vergonha. E por que se diz: ‘o vice-reino do Prata era tudo junto e quando se separou rompeu, virou Argentina, Uruguai e Paraguai. Por que o Brasil continuou igual?’ Daí falam ‘foi incrível a articulação dos grandes artífices da independência que mantiveram o Brasil uno’. Unido porque os senhores de escravos, os grandes fazendeiros, a ‘bancada ruralista do Senado’, que está aí até hoje, disse para o Dom Pedro: ‘quer que a gente te dê apoio? Quer manter o Brasil unido?’. Dom Pedro: ‘quero’. ‘Então não mexe com a escravidão’. Entendeu? São 200 anos. Essa é a principal reflexão: o país que fez a ‘independência ou morte’ para poucos. ‘Independência ou morte para mim. Para eles independência e morte’. Que é a escravidão. E onde estão os reflexos disso? Hoje, no país do racismo estrutural, com os negros sendo as principais vítimas da polícia, em subempregos. Isso vem desde o começo, e teve uma chance de mudança em 1822, depois em 1830, em 1850, e daí aboliu a escravidão em 1888 sem nenum projeto de inserção da escravatura na sociedade brasileira, com educação, emprego e habitação. A gente colhe o que plantou, que foi a desigualdade. Esse é o país da desigualdade. 

E Dom Pedro I, amava o Brasil ou o poder?

Ele amava muito o Brasil. Claro que ele amava o poder também. Era um príncipe carioca. Nasceu em Portugal, em 1798, e veio para o Brasil com 10 anos, foi criado aqui no Rio. Tinha um lado que era meio playboy da Barra da Tijuca (risos), um lado nojentinho, uma pegada Luciano Huck, embora esse seja paulista, mas mora na Barra. Mulherengo e tal. Mas teve o lado bom de ser playboy, porque era um cara descolado, cheio de ginga, tocava sete instrumentos, o Príncipe Orquestra como chamam. Mas ele realmente aprendeu a amar o Brasil, amava profundamente, e mesmo com todos os ‘senões’ foi uma força bem positiva para o país. Teve um historiador americano Neill Macaulay, que escreveu uma linda biografia sobre ele, que diz o seguinte: ‘Dom Pedro não era perfeito e nem sequer aperfeiçoável’. Ou seja, não dava nem para melhorar o que ele era. Quem estuda ele não consegue ‘perdoar’ os defeitos dele que eram muitos, mas não consegue deixar de se apaixonar pelos predicados. Repito: tinha vários defeitos, e um viés autoritário, mas sempre teve um lado libertário, ‘democrático’, e sempre teve um lado fascinante. Fora que era um bonitão, Tarcísio Meira, Marcos Pasquim, Marcos Palmeira, Caio Castro e Eduardo Bueno, cinco galãs que já fizeram o papel de Dom Pedro (risos). 

Isso se perpetuou um pouco no filho, Dom Pedro II, no amor pelo Brasil e a sapiência?

Dom Pedro I foi muito mal-educado. Falava mal inglês, o francês, não sabia nada. Foi um péssimo aluno. Era inteligente, mas inculto, iletrado. Porque uma coisa é ser burro e outra coisa é ser ignorante. E ele era ignorante no sentido de que o pai e a mãe, Dom João e Carlota, não cuidaram da educação dele. Deram educação, mas ele podia decidir se queria ficar na aula ou não. Óbvio que nunca queria ficar e mandava os professores embora. Tinha autonomia sobre isso desde os 8 anos de idade. E aí quando conheceu Leopoldina, que era maravilhosamente culta, sabia todas as línguas, era amiga do Shubert, aquele músico, tinha conhecido Goethe (escritor alemão), uma mulher incrível, aí ele viu como era ignorante. E por causa disso decidiu que os filhos dele teriam uma grande educação. E Dom Pedro II teve isso, mas ele era um sorumbático, meio soturno. Transformaram ele nisso. Com 9 anos já era um velho, não podia sair do Palácio, estudava o tempo inteiro. Teve seus casos também, suas amantes, mas o Dom Pedro teve 2 ou 3 mil mulheres. E o Dom Pedro II teve 4, a mulher dele, Teresa Cristina, e umas amantes. Mas estudou muito, sabia muito, era um letrado. A única coisa que os une era que os dois de fato amaram o Brasil. Mas não tenho dúvidas que Dom Pedro I amou o Brasil e foi bem importante para o país, com todos os ‘senões’. 

Há uma expressão usada bastante nas redes sociais que diz que ‘o Brasil não é para amadores’. Você concorda com isso?

Com certeza. O Brasil é turbulento, confuso, avança e recua. A tal ‘jabuticaba brasileira’… É cheio de jabuticaba na lei, na política, na economia. Os planos, Sarney, Collor, só para ficar nesses, fora os do império. A questão é que a frase é divertida e poderia indicar as complexidades do Brasil, que além de torná-la engraçada, complexa. Mas infelizmente a frase indica a incompetência do Brasil. Temos coisas absurdas e vemos isso todo dia, é só ligar no Jornal Nacional. Ver o que estamos vivendo, o governo que a gente tem e é bom deixar claro: me posiciono de todas as formas possíveis contra esse governo, mas uma coisa é certa, ele foi eleito. Cinquenta e seis milhões de pessoas quiseram ele (Jair Bolsonaro). Só que daí vem a outra coisa: foi eleito e ele fala mal da própria eleição que elegeu ele. O sistema de votação que o elegeu. Deveria ter feito isso se tivesse perdido. Claro que está fazendo isso porque está preparando uma eventual futura derrota, ele sempre vai contra a democracia. Só que ele foi eleito. Então, o Brasil não é para amadores, não é. Ao mesmo tempo é um país bem amador. 

E qual é a importância de saber a fundo a história para mudar o futuro do país?

É decisivo, é definitivo e é essa a questão que aflige o Brasil e os brasileiros. Só é possível construir um país com cidadania e o que é isso? É o agente social, é você, sou eu, todos que nos cercam, tendo uma visão de país e querendo construir uma nação. E tem de fazer isso, independentemente de ser de esquerda ou direita, e quase que também de política. Não sou ingênuo, não vou fazer esse discurso antipolítica, mas ela não é apenas a partidária e nem a do Congresso, é a do dia a dia, dirigir do jeito correto, é teu comportamento como cidadão. Tanto seus direitos como os seus deveres. E o brasileiro de vez em quando se lembra de cobrar os seus direitos e de vez em quando cumpre os deveres. Qual a base disso? O conhecimento histórico. Saber o momento histórico que você vive e os que vieram antes, que vão apontar para os que virão depois. São aqueles dois chavões: povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la e povo que não sabe de onde veio não sabe para onde vai. O brasileiro não sabe ‘chongas’ da sua própria história e vive nesse limbo. De uma forma amadora. O Brasil não é para amadores, mas ao mesmo tempo é amador, no sentido de exercício da cidadania, da trama social e está isso tudo na nossa cara todo dia. Quantas coisas erradas… Aliás, quantas estão certas? Tem uma certa e 600 erradas.

O Brasil é de fato um país independente?

O processo de independência do Brasil começa com ele contraindo uma dívida externa gigantesca. Portugal diz: ‘Para conseguir a independência tenho de reconhecer e, para isso, vocês vão ter de pagar toda a infraestrutura que deixei. E vão ter de pagar a dívida externa que eu, Portugal, tenho com a Inglaterra’. E para pagar Portugal e a dívida externa o Brasil pegou um empréstimo gigantesco impagável. Então já nasce endividado, centrado na monocultura do café e na exportação, sem industrialização, sem investimento em conhecimento, universidade e para isso aprisionado. A ‘bancada ruralista do Congresso’ plantando café, o gado e aí ainda ligado a escravidão. Abole a escravidão… Então é um país que não construiu sua própria independência. Ainda é um país dependente e não estou falando no sentido da globalização, mas é prisioneiro de si próprio. O lado bom disso é que tua liberdade depende de ti mesmo.  

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 27 de julho de 2022