“No centenário da independência existia o interesse de mostrar que o Brasil era um país potente, que já era uma nação poderosa”, afirma a Doutora em Comunicação e Cultura, Lucia Santa-Cruz

A imprensa sempre teve papel importante na construção do país. Estima-se que tenha tido início em 1808, com a vinda da família real para cá, com a fundação da Imprensa Régia e a publicação do primeiro periódico, a Gazeta do Rio de Janeiro. Cheia de altos e baixos, o fato é que ela participou ativamente do processo de independência do país e, no centenário da efeméride, em 1922, trabalhou para mostrar para o mundo a ‘nação’ que o Brasil tinha se transformado após o grito do Ipiranga.
A constatação é da pesquisadora, doutora em Comunicação e Cultura e docente na ESPM Rio, Lucia Santa-Cruz. Desde o início deste ano, que corresponde ao bicentenário da emancipação brasileira, a especialista analisou os jornais da época, em comparação com a imprensa atual, para identificar o destaque que as datas tiveram nos veículos informativos. “Em 1922 é um período que, ao mesmo tempo, tem todo esse desejo de projetar uma imagem extremamente positiva, moderna, mas temos essas outras facetas que mostram que o país ainda convivia com muitas questões do passado”, detalha. Se nos jornais a realidade era ‘maquiada’, para que só se mostrasse o que havia de bom no país, as revistas fizeram o papel inverso: criticavam com humor, usavam charges e chamavam atenção para a falta de participação da população nos eventos oficiais.
Passados 200 anos da independência, o foco dos veículos mudou: houve uma análise mais aprofundada do que significou a independência de fato, quais foram os grupos participantes, como a efeméride é enxergada hoje. Mas, com a proximidade do 7 de setembro, o interesse acabou perdendo espaço para o cenário eleitoral tumultuado e as tentativas do governo federal de comemorar a data, principalmente com a vinda do coração de Dom Pedro I para exposição. O resultado da pesquisa, em processo de finalização, é detalhado na entrevista abaixo e deve estar em livro a ser lançado em março de 2023. Confira:
Você coordenou uma pesquisa que analisou como os jornais noticiaram o centenário da independência, em 1922. Como que ela surgiu?
Na verdade, não é só sobre 1922. Justamente, o que me chamou atenção foi entender como o centenário foi noticiado e como está sendo agora em 2022. Como surgiu a ideia? Sou professora de História e Jornalismo e é um tema muito recorrente a ideia de que a imprensa foi decisiva para a independência. Ela ajudou a construir o ambiente da emancipação, fomentou, as ideias circularam pelos jornais, já é um fato consolidado. Mas, hoje em dia, se fala muito pouco sobre como 100 anos depois a efeméride foi comemorada. É muito lembrada a exposição do centenário, as movimentações no Rio, as mudanças urbanas, mas não com esse foco na imprensa. Comecei a pensar e, como estávamos nos preparando para a comemoração do bicentenário, já que a pesquisa começou no início deste ano, a ideia foi comparar esses dois momentos.
Como era o Brasil nos 100 anos da independência, qual era o contexto histórico?
A república era muito recente, não tinha nem 30 anos. Existia toda uma preocupação por parte das autoridades e elites mostrar que o Brasil era um país que havia se libertado do seu passado colonial, atrasado, escravocrata, que tinha entrado em um outro momento. De modernidade, avanços, com várias conquistas tanto do ponto de vista técnico quanto cultural, artístico. Existia esse interesse de mostrar que o Brasil era um país potente, não só no sentido de futuro, mas principalmente já era uma nação poderosa. Ao mesmo tempo, a gente vivia a primeira República, que era um tempo marcado pela censura aos jornais, perseguição à imprensa, temos vários estados de sítio nesse momento e muitas revoltas acontecem. É um período que, ao mesmo tempo, tem todo esse desejo de projetar uma imagem extremamente positiva, moderna, mas temos essas outras facetas que mostram que o país ainda convivia com muitas questões do passado. Principalmente da perpetuação da desigualdade. Temos do aspecto político uma tentativa de estabelecer uma determinada agenda para o país, não apagando, mas ressaltando o que fosse extremamente positivo e, o que não fosse, deixar muito de lado. Não é muito diferente do que a gente vai ver em outros momentos históricos, mas neste é muito acentuado, talvez até porque com essa preocupação de mostrar como o país tinha condições de competir com o mundo em pé de igualdade, isso vai ficar mais forte. A própria ideia de modernização do Rio era isso, precisávamos ter uma cidade que não devesse em nada às europeias, na visão deles. Para isso, se derruba o Morro do Castelo, a modernização segue o modelo parisiense e afasta as populações mais pobres da área central da cidade. Tem uma coisa meio eugenista, de limpeza, que vai acontecer nesse momento.
Em 1922, grande parte da população brasileira ainda era analfabeta. Como a força dos jornais chegava a essa população?
Isso é uma questão que vai atravessar o Brasil até pelo menos a década de 1960, que convive com índices de analfabetismo muito altos. Mas, ao mesmo tempo, temos uma prática que vem também desde o Brasil-colônia, que é a leitura compartilhada. Tem uma pessoa que é alfabetizada e lê para outras pessoas. Isso já permite uma difusão das informações. Também tem a própria circulação dos fatos por via oral, as pessoas comentando entre elas. Logicamente não podemos pensar em 1922 com nossos padrões, o modo como vivemos hoje com os dispositivos que temos em relação à comunicação. Aquela época era mais restrita, mas já vamos vendo bastante coisa interessante nesse momento. Temos ali uma divisão muito clara entre jornais e revistas. Os jornais são muito menos críticos, praticamente acríticos, e as revistas abusam muito do humor, que trabalhavam com charges, caricaturas, textos humorísticos. Elas questionam: ‘para quem é essa festa, o centenário é para quem, cadê o povo que não aparece?’ Algumas coisas que não estavam nos periódicos aparecem nas revistas como, por exemplo, o fato de que muitas pessoas foram desalojadas das suas casas para receber as comitivas que vieram expor na Exposição do Centenário. E isso não está nos jornais. Muito parecido com o que acontece quando a corte vem para o Brasil em 1808, que também não existiam moradias para quantidade de pessoas que vieram de Portugal, então marcaram casas para que os moradores saíssem e fossem ocupadas por integrantes da corte. E isso, curiosamente, se repete em 1922. Alguma coisa que só encontramos nas revistas.
Os veículos analisados são do Rio?
Como é um volume muito grande, me restringi ao Rio, mas veículos que tinham o alcance nacional. De todo modo, era a Capital federal e onde as principais transformações estavam acontecendo. É muito material, até porque temos a sensação de que a imprensa de 1922 era artesanal, mas já tem coisas sofisticadas. Por exemplo, a Revista da Semana faz um acompanhamento das obras, tanto de embelezamento, como chamam as de modernização, quanto as da exposição, que é um registro semana a semana. Já existia o que a gente pode chamar de uma cobertura.
E o que foi a Exposição do Centenário?
Ela aconteceu no Rio, foi a primeira exposição depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), então era considerado um evento bem importante. E qual era a ideia? Que vários países viessem para o Rio e construíssem pavilhões, prédios, onde apresentavam produtos do país, máquinas de desenvolvimento, dentro da tecnologia da época. Foram 13 países e os pavilhões do Brasil. Ela foi inaugurada em 7 de setembro de 1922, durou oito ou nove meses e teve um público muito grande, apesar de ser caro, porque cobravam ingresso. Estamos falando de um período que vai ter uma série de inovações tecnológicas, que tem uma aceleração, e isso faz com que as pessoas fiquem maravilhadas. Tem até aquela ideia de que a modernidade é isso, de saber do que tem de mais inovador e está mudando a forma das pessoas viverem. Então a exposição foi um tremendo sucesso e, não à toa, é nela que acontece a primeira transmissão de rádio no Brasil, com um discurso do presidente Epitácio Pessoa, que faz do pavilhão onde recebia as delegações. Espalharam transmissores na cidade, em alguns morros, e deu para ouvir em vários lugares, inclusive em Petrópolis, em um pedaço de São Paulo. Na verdade, a qualidade do áudio era muito ruim, não conseguiram entender muita coisa. Um dado engraçado é que houve a transmissão do discurso e depois, diretamente do Theatro Municipal, da ópera O Guarani, do Carlos Gomes. Tanto que esse é um dos motivos que A Hora do Brasil usa, em sua abertura, essa música. Isso durou uns 10 dias em mesmo horário e muita gente ficou apavorada, foram contra, padres se manifestaram dizendo ser uma ‘coisa do demônio, uma voz que não se sabia de onde vinha’. Em menos de dez anos o rádio tinha se transformado em um veículo popular no Brasil. E foi exatamente isso: a exposição serviu de palco para que tudo que fosse de inovação fosse apresentado.
A impressão que dá é que eles queriam mostrar o Brasil como nação para o exterior…
Isso. E também é um ponto que a gente vai perceber nos jornais, porque tem isso desde 1920, quando começa a aparecer uma cobrança para saber como vai ser comemorado. E é muito interessante porque não é ‘nós estamos contentes com nossa emancipação’, ou ‘a nação vai comemorar’. Gira em torno de ‘como é que vamos mostrar para o mundo que somos uma nação independente?’ Essa preocupação com o olhar externo está nos jornais muito claramente. Tanto que temos um volume de matérias falando sobre as declarações de líderes de outros países falando sobre o Brasil. Isso tem, às vezes, mais destaques do que outras ações importantes. É muita cobrança sobre o que será feito, o que as nações vão dizer.
E desde 1822 há também a questão do protagonismo da independência. Você falou que os jornais ajudaram no processo da emancipação, mas São Paulo e Rio ficam nessa briga de quem foi o responsável pelo processo. E até os jornais de São Paulo colocaram a imagem do Pedro Américo sendo a oficial do grito. Como os jornais atuaram nisso?
No material que vi até agora praticamente não cita São Paulo e não há nenhuma discussão sobre o próprio processo da independência. Na verdade ela é apresentada como um processo natural. Portugal chegou, descobriu, colonizou, o tempo passou, veio o Dia do Fico e o Brasil ficou independente, mais ou menos assim. O que é engraçado porque isso bate com a narrativa que vamos encontrar em 1922 de historiadores, que costumavam comparar a emancipação como se fosse o processo natural de crescimento do ser humano. O processo teria sido tranquilo, pacífico, uma decorrência do que estava acontecendo. Os jornais reforçam isso e não entram tão fortemente nessa disputa para dizer onde foi. Até porque a ideia do grito do Ipiranga é mantida como a oficial e incontestável. Não encontrei nenhum material questionando isso. E aparece também muito a ideia de construir os grandes heróis, a coisa do panteão, alguns jornais vão fazer uma espécie de paralelo entre os grandes nomes do império com os presidentes da primeira República, como se fossem equivalentes. Não parece que são dois regimes distintos, república e monarquia, como se um fosse a consequência natural do outro. Mas existem alguns historiadores que falam com a necessidade de mostrar como o Rio de Janeiro era o motor do país. Até a própria atenção que o governo federal vai dar à cidade é um exemplo disso.
Você falando das questões de 1922 me lembram o que a gente viu agora, as cobranças das comemorações. Quais são as semelhanças e diferenças da cobertura no centenário e no bicentenário, até por ser um pós-pandemia e contexto político?
A principal diferença é que na cobertura de 2022 essa cobrança do que vai acontecer vai se intensificando ao longo do ano. Ela já vai aparecendo em 2021 como crítica ao governo federal que ‘não está fazendo nada’. Mas isso não pauta muito. Das primeiras matérias que vão surgindo é um questionamento da independência, e isso é muito diferente de 1922,’ o que foi esse processo, como foi construído?’ Até a ideia do 7 de setembro, o que se comemorou como a data da independência foi a coroação de Dom Pedro I, 12 de outubro. Isso não aparece em 1922, mas cem anos depois sim. E em 2022, fiz o recorte dos dez portais de notícias mais acessados do Brasil, como UOL, Globo.com, BBC e aí a gente vê que tem essa preocupação de questionar o que foi essa independência e o que ela representa hoje. Aparecem matérias falando sobre grupos dentro do Brasil que não foram incorporados à nação, não tem tanto a discussão do que é ser brasileiro, mas o que é participar da vida do país. ‘Existe independência para essas pessoas, ou elas ainda estão nessa situação de dependência?’ Tem um questionamento muito maior, sem dúvida nenhuma. Alguns desses portais, como O Globo, a Folha, vão criar retrancas específicas, selos de ‘200 anos’, e fazem matérias especiais justamente para discutir a independência, um material muito farto e diferente na ocasião do centenário. E acontece uma coisa muito curiosa: a partir do momento que chegamos próximo do 7 de setembro em si, que aumentam as preocupações com eventual golpe, uso político da data pelo presidente, como ele havia feito em 2021, a cobertura muda e passa a ser basicamente sobre isso. Ao mesmo tempo que os jornais reclamam da captura da efeméride pelo Bolsonaro como instrumento de campanha, também são capturados também pela eleição. Abafou, os outros aspectos que estavam aparecendo de repente vão sendo engolidos. Vamos ter um volume de matérias que falam sobre o 7 de setembro, se vai ser em Copacabana ou não, entre outras coisas, que é muito maior que as mais específicas e questionadoras, reflexivas, no período. De certa forma há uma contaminação pela cobertura eleitoral. E um outro ponto que vai aparecer até com bastante ironia, uma coisa satirizada, é a vinda do coração do Dom Pedro I. Inclusive as comparações com o que acontece no sesquicentenário, com a ossada dele vindo para o Brasil. Tem de tudo mas, ao mesmo tempo que tem algo mais satírico, tem uma cobertura intensa. O Globo, por exemplo, tem a cobertura fotográfica de toda vinda do coração, desde como é guardado no Porto, os testes, perícia, o transporte, como desembala. Apesar de ter criticado, acaba dando extrema atenção a este fato.
Esta pesquisa deve virar livro?
Sim, vai virar. Deve ficar pronto até início de março.
E para finalizar, você acha que o Brasil é um país independente?
Bastante difícil de dizer. Talvez independente em que sentido, porque a independência em 1822 foi uma emancipação política curiosa, já que não rompe com uma série de coisas que poderiam ter sido questionadas. E a gente, de certa maneira, arrasta esse passado colonial com muito mais intensidade que talvez gostaríamos de admitir. Então acho que ainda falta muito. Enquanto a cidadania não for plena, não podemos nos considerar um país independente. Porque a gente vai estar dependente, mesmo que não sejamos colônia, mas internamente acaba sendo como se tivesse vários países, um subjugando o outro. Espero que um dia a gente consiga superar isso, para que a cidadania seja, de fato, para todos e não só para uma elite.
(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)
Publicada em 7 de dezembro de 2022