“Essas heroínas da independência atravessaram a fronteira mais proibida para as mulheres até hoje, a da política”, diz a historiadora Heloisa Starling

Nas comemorações dos 200 anos do Grito do Ipiranga tem chamado a atenção a revisão histórica, dentro e fora da academia, sobre a participação feminina nas rebeliões e revoltas que marcaram o processo de independência do Brasil. Pela primeira vez, heroínas desse período pouco citadas pela historiografia começam a ter sua trajetória conhecida. Um exemplo é o projeto Mulheres na Independência, organizado pela historiadora Heloisa Starling e pela escritora e roteirista Antonia Pellegrino, que traça o perfil de sete mulheres de diferentes regiões do país que tiveram atuação política relevante entre o fim do século 18 e início do século 19. As pesquisas sobre essas heroínas foram feitas inicialmente para o podcast Mulheres na Independência, que está disponível em todas as plataformas, com grande sucesso. O material gerou também um livro, Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá, recém-lançado pela editora Bazar do Tempo. Sete mulheres de hoje (incluídas as organizadoras) assinam os perfis mostrados no livro. Heloisa Starling, por exemplo, escreve sobre Hipólita Jacinta Teixeira de Melo (1748-1828), a única mulher que participou da Conjuração Mineira – o primeiro evento anticolonial da América Portuguesa, desmantelado em 1789. Antonia Pellegrino faz um perfil de Bárbara de Alencar (1760-1832), a primeira presa política brasileira. A fascinante história de Maria Felipa de Oliveira (?-1873), pescadora e comerciante negra da Ilha de Itaparica, que participou da expulsão da esquadra portuguesa na Bahia, em 1823, é contada pela escritora Cidinha da Silva. A historiadora Marcela Telles fala sobre a baiana Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), que se disfarçou de homem para se alistar no Exército. A jornalista, escritora e tradutora Virginia Siqueira Starling escreve sobre a imperatriz Leopoldina (1797-1826), que influenciou o marido, D. Pedro, no período de declaração de independência. A lista de heroínas inclui até uma criança, a menina Urânia Valério (1811-1849), baiana de origem portuguesa que começou, já aos 10 anos, a publicar panfletos que movimentaram o debate político sobre a Independência. Ela é perfilada pela historiadora Patricia Valim. Por fim, a jornalista e escritora Socorro Acioli conta a vida de Ana Maria José Lins (1764-1839), que convocou senhores de engenho e escravizados à luta armada em Alagoas. “O traço característico que une essas sete mulheres é o fato que elas atravessaram a fronteira mais proibida para a mulher: a fronteira da política”, afirma a historiadora e cientista política Heloísa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais, na entrevista a seguir. Segundo ela, é possível compreender por que há poucos registros históricos da maioria dessas heroínas. “O esquecimento foi a forma com que essas mulheres foram reprimidas”, diz.
No período em que viveram e atuaram politicamente as sete heroínas perfiladas no livro e no podcast, entre o fim do século 18 e início do século 19, as mulheres não tinham vida pública — só era aceitável visitarem parentes ou ir à missa – e, obviamente, não podiam participar do processo político. Só que esse período foi marcado por grandes mobilizações populares em todo o país, com participação inclusive de outros grupos segregados pela elite, como negros forros, escravos, indígenas e brancos pobres. O ativismo dessas sete mulheres era de fato uma raríssima exceção nessa época ou elas foram vítimas do apagamento de memória da historiografia oficial, que omitiu ou deixou de registrar a participação feminina por puro preconceito de gênero?
São duas coisas. Depois que Antonia e eu fizemos o livro, ficamos pensando: estamos levantando uma tampa. Porque provavelmente existiram várias outras que precisam de pesquisa. O caso da Maria Felipa é uma história sensacional porque ela é uma estrategista militar, organiza um grupo de 40 mulheres — que a gente hoje chamaria de um grupo de guerrilha — sendo que, dessas 40, sabemos apenas o primeiro nome de cinco. Ou seja, tem uma história aí que precisa ser recuperada. O traço característico que une essas sete mulheres é o fato que elas atravessaram a fronteira mais proibida para a mulher: a fronteira da política. Elas foram buscar voz pública, e essa é uma fronteira que continua sendo a mais difícil até hoje. Se olharmos as dificuldades e a forma com que tentam impedir a mulher de ter atividade política, de ter voz pública e denunciar ideias, isso continua acontecendo. Então, é como se tivéssemos levantado a matriz de uma forma de ação das mulheres na luta por visibilidade. E a repressão que é feita a essas mulheres é muito terrível, que é o esquecimento. Os gregos diziam que o esquecimento é pior do que a morte. E eles tinham razão, porque na morte você guarda o afeto das pessoas, você tem a lembrança das pessoas. No esquecimento, você apaga tudo. Essa foi a forma com que essas mulheres foram reprimidas. Elas foram esquecidas, porque atravessaram a fronteira mais proibida para a mulher, que é a fronteira da vida pública e da política. Então é uma história bonita. Mas acho que certamente precisamos estudar mais essas mulheres. Se só em Itaparica tinha mais 40 mulheres atuando na luta política, imagina nas demais províncias.
Entre as sete mulheres, todas com histórias de vida inspiradoras, duas chamam a atenção por terem vindo de famílias abastadas e influentes: a Hipólita, que fazia parte de um clã importante da região do ouro de Minas, e a Barbara de Alencar, de uma família proprietária de terras no sertão do Ceará. Gostaria que a senhora falasse um pouco mais sobre essas duas mulheres, em especial a incrível capacidade de liderança e articulação ao lidar diretamente com uma elite patriarcal.
No caso da Hipólita, o que mais me impressiona é isso, porque são sete mulheres cuja participação política se dá em torno dos dois projetos de independência – o vitorioso, capitaneado pelo Rio de Janeiro, e o ciclo revolucionário da independência, liderado por Pernambuco. E a origem da ideia e da mobilização de independência está na Conjuração Mineira, quando Tiradentes diz que “o país das Minas pode ser independente”, e tinha de ser as Minas porque não existia Brasil naquele momento. A Hipólita é muito impressionante porque toda a estrutura da Conjuração, a maneira como eles organizavam as ideias e como debatiam, era toda masculina. Nota-se que nas bordas havia mulheres, as “musas”, como a Barbara Heliodora (casada com o Inconfidente Alvarenga Peixoto) e a Marília de Dirceu (que inspirou o poeta e inconfidente Tomas Antonio Gonzaga, de quem foi noiva). Mas tendo uma atuação política como a da Hipólita, no sentido de que, na hora que ela vê que a Conjuração vai ser derrotada porque Tiradentes foi preso, ela dá ordem. Repara: é uma mulher que dá ordem aos dois principais líderes militares da Conjuração Mineira para organizar a resistência armada. Ela manda essa ordem e é obedecida. Então é muito impressionante a força dessa moça. E ela foi obedecida, porque termina o bilhete dela dizendo: “Quem não tem competência para as coisas que não se meta nelas, e é melhor morrer com honra do que viver com desonra”. Quando o líder militar, que é o padre Toledo, vai ser preso – e ele segue a orientação dela e vai organizar a resistência –, ele diz: “Vou morrer com a espada na mão porque não vou morrer como carrapato na lama”. Ou seja, ecoou no coração dele. É muito incrível pensar, lá no século 18, nas Minas, que ela tinha certeza de que seria obedecida, mesmo interferindo na organização militar da resistência – ela, inclusive, muda a estratégia militar na mensagem enviada. E ela foi vítima do esquecimento, dessa repressão, porque até hoje não temos ideia do rosto que ela tinha. Não sabemos se ela era bonita ou feia, nada. Deu trabalho fazer esse perfil. Ainda fico imaginando como ela era, como se vestia. Não tem nada, apagaram tudo. No caso da Bárbara de Alencar, é muito violento o que ela vai sofrer. Ela espera acabar a missa de domingo e avisa, na frente da população do Crato, que vai instalar a república, isso no dia 3 de maio de 1817. Mas ela faz isso na praça pública. O povo segue atrás dela, ocupa a Câmara Municipal, depõe as autoridades portuguesas, elege outras, abre a cadeia… Como você vai apagar essa moça? Como vai fazer pra ela ser esquecida? Quando a repressão chega, as autoridades portuguesas têm um problema: como apagar uma mulher que estava na praça? E aí eles fazem uma coisa terrível: acorrentam Bárbara na sela de um cavalo e a levam em desfile público, do Crato até Fortaleza, para ser degradada. É uma forma de desmoralizar essa mulher, que inclusive era da elite. Então repare: eles precisam reconhecer que ela é uma presa política e exercem sobre ela uma violência dupla: de um lado, vão degradar a figura dessa mulher, e uma vez degradada, vão apagar. As notícias da Bárbara de Alencar depois vão ser fragmentadas. Então é impressionante essa estratégia de silenciamento dessas mulheres, que eram muito valentes. Quando Bárbara volta para o Crato, depois de passar quatro anos na cadeia em condições pesadas de prisão, ela vai participar da Confederação do Equador, ou seja, está presente no ciclo revolucionário inteiro. Essa é outra característica dessas mulheres: elas perdem as propriedades que tinham e vão reconstruir. Tem outra mulher que foi muito difícil de pesquisar porque tem pouca coisa, a Ana Lins, que comanda a última batalha da Confederação do Equador no engenho dela, em Alagoas, onde havia escravizados. Quando ela vê que está cercada pelas tropas de D. Pedro I e não tem munição, ela dá fuga aos homens (que conseguem fugir) e fica sozinha para receber as tropas. D. Pedro ficou possesso e mandou destruir tudo, tocar fogo no engenho. Ana Lins foi presa e, quando sai da cadeia, ela reconstrói o engenho. Ocorreu a mesma coisa com a Hipólita: ela perdeu tudo, todas as propriedades. Só que não tinham ideia do que ela era capaz de fazer. Então são mulheres com esses dois traços: um desejo de voz pública e de visibilidade, de atuação política, e são mulheres muito valentes porque conseguem continuar brigando contra a Coroa portuguesa ou contra D. Pedro I na forma de reconstruir tudo o que foi perdido. Vale a pena a gente conhecer a história dessas moças, não?
Desde o período colonial, a formação da sociedade brasileira se apoiou em dois pilares: na escravidão e no sistema patriarcal. Veio o império e, depois, a república, e a sociedade brasileira avançou muito pouco, reciclando os piores valores desses pilares, por meio do racismo, misoginia e machismo. Por que nossa sociedade mudou tão pouco ao longo de sua história e qual o caminho para avançarmos em direção a uma sociedade moderna e mais igualitária?
O Joaquim Nabuco, lá no século 19, disse uma coisa muito legal: “O Estado brasileiro é fundado na escravidão”. Ou seja, a estrutura que garante esse Estado e inclusive permite a centralização do Império é a escravidão. Ele disse também que a sociedade que vai brotar em torno disso é uma sociedade violenta, desigual, hierárquica e racista. Se a gente der um salto de quase 200 anos e chegar na Constituição de 1988 — nossa expressão mais fortemente democrática, do nosso desejo de democracia – talvez o nosso grande engano foi ter investido muito nas instituições democráticas e na democracia como uma prática, como eleições, voto, etc. Mas esquecemos de um outro eixo que o Alexis de Tocqueville (1805-1859) analisa, que é a democracia como um modo de vida em sociedade. Não investimos nisso, na construção de uma cultura democrática. Precisamos fazer isso urgente. E para fazer, precisamos olhar para o passado e enfrentar o traço do Joaquim Nabuco quando ele diz: “Essa sociedade que foi fundada na escravidão só criou uma epiderme civilizatória, e uma epiderme você corta fácil”. Segundo ele, “essa é a nossa ficção engenhosa de nação, e embaixo dessa epiderme civilizatória ferve essa sociedade fundada na escravidão”. Então temos de olhar para esse passado, reconhecê-lo e enfrentar o desafio de Tocqueville – de como vamos praticar a democracia no nosso cotidiano. Acho que esse investimento precisa ser feito com muita urgência, precisamos criar as ferramentas, o mecanismo, o debate público, contar as histórias para que as pessoas possam entender o que está no nosso passado e buscar soluções para o nosso presente e futuro. Precisamos de um projeto de futuro para esse país – e esse projeto precisa ser democrático.
As mulheres já são 52% da população brasileira, mas ocupam apenas 15% das cadeiras do Congresso Nacional. Falta uma articulação feminina mais ampla no sentido de ocupar esse espaço de poder importantíssimo para combater a política de gênero?
Acho que as mulheres fazem um esforço enorme para ocupar esse espaço, mas é a tradição que está lá na independência: a fronteira mais difícil de ser transposta para a mulher é a fronteira da política. Então, se você observar ao longo da história, as formas como as mulheres se organizaram – criando jornais, organizações e manifestações na cena pública –, ainda assim, 200 anos depois, não conseguimos atravessar completamente essa fronteira. E é urgente que atravesse porque é fundamental que essas mulheres estejam na política para que possam ampliar, defender e consolidar nosso catálogo de direitos, que é a alma da democracia. Então não só nós, mulheres, precisamos lutar pela igualdade de gênero como lutar para ampliar esse catálogo de direitos, para que seja a alma dessa cultura democrática no Brasil. Mas, reforçando, ainda não atravessamos completamente essa fronteira. O que começamos, lá na independência, o fio continua até hoje. Pesa isso que você citou, da baixa presença das mulheres na política, dificuldade de serem reconhecidas, da violência que sofrem no espaço institucional do poder, as formas de violência e de como se desqualifica a fala da mulher e de seu comportamento –nós vimos isso no debate eleitoral, com a jornalista Vera Magalhães, a maneira como ela foi tratada. Tem um caminho ainda a ser percorrido, que essas mulheres que estavam lá iniciaram, precisamos completar esse caminho.
Pela primeira vez na comemoração de um Sete de Setembro, a escravidão, o racismo e o modelo patriarcal de sociedade, que pune a mulher, passaram a ser tema de debate, dentro e fora da academia. A senhora enxerga algum avanço do país em pelo menos começar a discutir de forma crítica a sua história?
O conjunto dos historiadores está fazendo um trabalho muito importante, todos eles. Se olharmos a historiografia, o que está sendo produzido, temos livros que estão trazendo essa discussão e um olhar historiográfico para os estados, as antigas províncias. Temos um trabalho formidável, como se os historiadores estivessem fazendo uma coisa bonita – tudo bem que estou puxando a brasa para a minha sardinha –, mas é uma arqueologia da esperança, que vai buscar como foi essa história de independência, soberania e liberdade. Como isso bateu nos escravizados? E aí reconstituímos uma rebelião tão importante como a Pedrosada (1823), em Pernambuco, que talvez tenha sido a primeira revolta negra no Brasil com influência direta da Revolução Haitiana (1791-1804). As crianças em Olinda cantavam versos em homenagem à revolução no Haiti – aquela que disse que a república não pode coexistir com a escravidão. A revista da Fapesp, que começou a fazer uma pesquisa bem desenvolvida sobre a independência, traz um artigo precioso sobre a questão dos povos indígenas – como foi no Ceará, em Pernambuco, as lutas indígenas no Espírito Santo, o que isso significou, a guerra declarada por D. João VI contra os botocudos (em maio de 1808, dois meses após a chegada da família real ao Rio de Janeiro). Além desse artigo, li uma coletânea de historiadores da USP que tem um capítulo sobre populações indígenas. Talvez esse seja o tema que mais precisamos avançar nessa arqueologia da esperança. Nos estados há especialistas pesquisando sobre as guerras indígenas. Tem um percurso muito rico a ser percorrido. Por outro lado, significa parar de olhar para o Ipiranga e olhar de frente para o Brasil e ver como ocorreu o debate, como se deu essa movimentação. Portanto, os historiadores estão fazendo um trabalho importantíssimo porque, como diria o Paulinho da Viola, “quando penso no futuro eu não esqueço do meu passado”. Precisamos ver esse brasileiro que nós fomos e esse brasileiro que poderíamos ser para que a gente possa construir nosso projeto de futuro. Acho que os historiadores estão olhando para a independência como Paulinho da Viola.
O Brasil é de fato um país independente?
Essa também é uma discussão que está sendo feita. Certamente, para que possamos avançar, expandir a nossa ideia de independência, do ponto de vista da soberania, é claro que somos. Soberania significa qual é o estado, quais são as leis que queremos? Numa sociedade desigual, hierárquica e racista, como podemos expandir internamente as nossas condições de soberania para que a gente possa de fato se reconhecer dentro de uma comunidade política com o vigor suficiente para olhar para o presente e para o futuro? Quais são as modificações que precisamos fazer para aumentar a questão da igualdade? Como precisamos pensar a exploração de nossas riquezas para que a gente possa resolver, de uma vez por todas, o problema da fome nesse país? Tem aí uma leitura contemporânea da independência que a gente pode se apropriar e, talvez – se pensarmos que independência significa lembrar junto –, se lembramos como esse processo ocorreu há 200 anos, como podemos expandir esse processo internamente para enfrentar os nossos problemas estruturais que invalidam, de muitas maneiras, podermos nos apresentar, para nós mesmos e para o mundo, como um país democrático, soberano, que enfrentou a desigualdade, a miséria e que tem orgulho de ser uma democracia. É uma boa pauta para os próximos 200 anos, não? Acho que poderíamos resolver isso nos próximos 15 dias, dado meu sentido de urgência…Não podemos esperar mais 200 anos para resolver isso. Temos de aprender algo com esse pessoal que estava fazendo debate público na independência. Quando a baianinha estava fazendo panfleto, quando os jornalistas estavam discutindo as ideias, eles estavam todos discutindo juntos. Isso também é uma coisa boa para chamarmos ao coração: vamos fazer juntos as nossas escolhas?
(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)
Publicado em 22 de setembro de 2022