‘Dom Pedro I tinha uma capacidade musical muito grande, tocava quase todos os instrumentos de uma orquestra’, afirma o multiartista Malcolm Forest

Qual foi o caminho, físico e da história, que Dom Pedro I percorreu nos dias que antecederam a independência do Brasil? Foi a fim de achar essa resposta que o multiartista Malcolm Forest produziu o documentário A Jornada dos Príncipes, que pode ser visto toda quinta e domingo – às 15h30 e 20h30 – de maneira gratuita no seu canal do YouTube, o Malcolm Forest Channel. No trabalho, que conta com entrevista com integrantes da família real, historiadores e pessoas que vivem ao longo do caminho, é possível entender como o primeiro imperador brasileiro e a imperatriz, Dona Leopoldina, trabalharam em prol da emancipação brasileira.
E durante as gravações, Forest, que é cantor e compositor, se aprofundou em diversas facetas importantes de Dom Pedro I, inclusive sobre a sua aptidão musical. “Um fato muito interessante é a capacidade musical que ele tem, uma herança dos Bragança. Dom João IV era compositor, e Dom João VI também, mas não escrevia sinfonias. Fazia pequenas óperas, e ele ensinou Dom Pedro a tocar trombone. E ele tocava quase todos os instrumentos de uma orquestra. Há relatos de nove instrumentos, dentre eles o violino, piano forte – muito parecido com o de hoje -, violoncelo, violão, cantava com boa voz, compunha modinhas e era um exímio compositor. Hoje temos cerca de 16 obras conhecidas dele”, afirma. Confira, a seguir, a entrevista completa:
Completamos 200 anos de independência do país. O que o senhor, um multiartista, preparou para comemorar a data?
O projeto base que idealizei foi o de refazer o resgate da jornada de Dom Pedro e também de Dona Leopoldina, os dois príncipes mais audazes que tivemos. Dom Pedro sai do Rio de Janeiro dia 14 de agosto de 1822 pelo Vale do Paraíba, com uma pequena comitiva à cavalo, e vai percorrendo as localidades, as fazendas e as vilas ainda pequenas. Passa, inclusive, por Aparecida, que era um bairro de Guaratinguetá. E vem para São Paulo angariando apoios. A guarda que o acompanha até o grito do Ipiranga e vem à cidade para colocar as coisas em ordem, porque naquele momento, com a volta de Dom João VI para Portugal, havia uma movimentação por conta da Revolução do Porto, que deixou uma situação muito instável tanto no Brasil quanto em Portugal. E é nesse contexto que ele encontra São Paulo, também com problemas por algumas ações de José Bonifácio e Martim Andrada, que estavam dirigindo a política de uma forma que não era exatamente o que Dom Pedro queria e precisava. Então ele vem colocar isso em ordem. E o meu primeiro projeto foi o resgate desse caminho, dessa trajetória, que batizamos como Jornada dos Príncipes. Também em contato com a Casa Imperial do Brasil, Dom Luiz de Orleans e Bragança (que morreu em julho), Dom Bertrand, surgiu na casa deles essas ideias, de visitar essas localidades agora, 200 anos depois, com os príncipes tetranetos de Dom Pedro e Dona Leopoldina para palestras, festividade, explorar o folclore maravilhoso que ainda existe no Vale do Paraíba, as congadas, bandeira do divino, Folia de Reis. Esse é o projeto base, era para ser realizado presencialmente, e foi, até vir a covid. Aí nós mudamos para um projeto mais digital, com programas online, lives, podcasts e um filme. E aí descobri muita coisa interessante sobre a vida deles. Fizemos duas cidades inicialmente a partir de 2018, Jacareí, como o lançamento do novo Centro Agrícola, e depois em praça pública, mesmo em Guaratinguetá, que também é a terra de Frei Galvão, cujo bicentenário de morte também transcorre este e no ano que vem.
Esse filme que o senhor disse, a Jornada dos Príncipes, ele reconta esse caminho, vocês foram aos locais, quem participa?
É um documentário, que gostaria de fazer uma dramatização completa. É um projeto longo, foram muitos dias de viagem. Fomos a essas localidades, colhemos imagens das fazendas antigas, alguns depoimentos, algumas histórias locais que não estão em livros, e também entrevistamos vários historiadores que conhecem a matéria, fazendo um contraponto entre a trajetória e a viagem em si, com os fatos que antecedem a independência do Brasil. A formação da guarda de honra, que se forjou, mais efetivamente, em Pindamonhangaba. Lá tem, inclusive, a Igreja São José, que foi construída depois do Segundo Reinado, mas estão sepultados vários integrantes desta guarda de honra do príncipe. Em Taubaté também estão enterrados outros integrantes. Temos interesse da TV Cultura em transmiti-lo, o no exterior também, uma rede norte-americana, e uma série de outras opções como a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) e TV Brasil (por enquanto está sendo transmitido pelo YouTube).
Li que no ano passado houve uma certa polêmica com este trabalho, dizendo que foi realizado com dinheiro público e que faz uma campanha a favor do retorno da monarquia. O que tem a dizer sobre isso?
O que houve não foi bem do filme, foi em relação a outro projeto, o concerto sobre música da época de Dom Pedro, sobre o bicentenário, já realizado com sucesso. O que acontece é que sempre há oposição, algum grupo que não é favorável, falam da apologia à monarquia, o que não é verdade. O projeto é todo histórico, mas a gente convida membros da casa imperial para participarem, porque agrega valor ao conteúdo histórico. São pessoas com memória familiar, contam uma história maravilhosamente. Dom Bertrand esteve em Taubaté, deu uma aula magna extraordinária. Não há nenhum proselitismo, não é uma campanha política. Inclusive a monarquia é suprapartidária, nunca foi a favor de um partido ou de outro. Existe sim a Casa Imperial e um movimento que pleiteia o retorno da monarquia no Brasil, mas nós não estamos levando nessa tônica, mas sim pela pauta da história e da comemoração do bicentenário, e patriótica, uma festa que não pode passar em branco.
O senhor disse que nessa trajetória da gravação do documentário descobriu coisas interessantes sobre Dom Pedro I. O que pode contar para a gente?
Ao contrário do que muitas vezes é ensinado, uma biografia de qualquer figura humana, tem uma história de muitas realizações. Em especial sobre Dom Pedro, um fato muito interessante é a capacidade musical que ele tem, uma herança dos Bragança. Dom João IV era compositor, e Dom João VI também, mas não escrevia sinfonias. Fazia pequenas óperas, e ele ensinou Dom Pedro a tocar trombone. E ele tocava quase todos os instrumentos de uma orquestra. Há relatos de nove instrumentos, dentre eles o violino, pano forte – muito parecido com o de hoje -, violoncelo, violão, cantava com boa voz, compunha modinhas e era um exímio compositor. Hoje temos cerca de 16 obras conhecidas, houve mais, algumas perdidas, inclusive valsas, mas não temos registro. E neste concerto em Brasília apresentamos pela primeira vez quatro composições dele. A abertura que fizemos foi com uma obra que ele inclusive apresentou em Paris, elogiada por Joaquim Rossini, que ficou amigo dele e fez questão de reger a peça. Era um múltiplo talento, também gostava muito de literatura. Aos 9 anos leu Eneida, a bordo de um navio. E a Dona Leopoldina também era uma excelente musicista, tocava piano, violão e cantava com boa voz, deve também ter tocado violino. Eles faziam saraus, tocavam juntos. Toda a vida dos dois a música os uniu. Houve coisas que afastaram um pouco eles, inclusive o caso da Marquesa de Santos – não entramos nesse assunto polêmico -, mas o que os uniu foi a música.
E conta-se que ele teria composto o Hino da Independência no mesmo dia do grito. Isso também é explorado?
Sim, essa é uma questão difícil para estabelecer exatamente. Provavelmente não compôs no dia, porque não houve tempo. O hino já existia, deve ter pensado algo a mais apenas. Falo isso por mim mesmo que sou compositor. Às vezes vem inspiração em um momento, mas de uma parte da música. Mas encaixou com a letra, que é do Evaristo da Veiga, jornalista, poeta, e também um livreiro e político. Ela foi editada em 1822 com o título de Hino Constitucional Brasiliense. E com uma melodia do compositor Marcos Portugal, um dos mestres de Dom Pedro. Essa música, aparentemente, já tinha popularidade. Se cantaram esse poema no dia 7 de setembro foi muito provavelmente com a melodia de Marcos Portugal, que não é muito fácil, tão cantábile como o hino de Dom Pedro I. Esse sim se tornou um grande hino, principalmente a partir do século 20. Começou a se popularizar um pouco antes de 1922, quando houve o primeiro centenário da independência do Brasil. Mário de Andrade escreveu sobre o assunto e ele comenta daquele modo bem-humorado: ‘o que se sabe do Hino da Independência é que nada se sabe sobre sua composição’. Até fiz um artigo, que está saindo no livro sobre o Dom Pedro, pela Câmara dos Deputados, com organização do José Theodoro Mendes, em dois volumes e eu escrevi sobre a música do imperador, entrando nos pormenores dos professores excepcionais que teve. O Rio sempre foi um grande centro musical, desde o século 18, e com Dom João VI, ele investiu muito, trouxe músicos da Europa, e temos um acervo, patrimônio imaterial, fantástico.
E como o senhor disse, a história sempre coloca Dom Pedro como o herói da nossa história. Mas como todo ser humano também tinha as suas fraquezas. Isso também é contado no documentário?
Muito pouco, porque isso já é bastante discutido, a partir do livro, até li no ginásio, sobre as maluquices do imperador. Mas o saldo é muito positivo para Dom Pedro e para o Brasil. Se não fosse a impetuosidade dele em vários momentos, não sei como estaríamos. Por exemplo, na criação da primeira constituição brasileira, também criou uma lei que diminuía os impostos para importação de livros, isso prevaleceu até muito recentemente. As composições musicais, inclusive o Hino da Independência e outros fatores incríveis. Também foi um herói em Portugal, porque resgatou o trono para uma brasileira. Colocou as coisas em ordem em Portugal, que é uma história bonita e dolorosa também, e a gente geralmente não aprende na escola o que aconteceu. Ele vai para Portugal em 1831 e sua filha, Maria da Glória, depois é aclamada rainha de lá, mas seu irmão, Dom Miguel, quer usurpar o trono, junto com Carlota Joaquina. E ele vai e resgata o trono. O Brasil teve uma rainha em Portugal, já que ela nasceu aqui. Não entro nessa história nesse primeiro filme. A ideia é fazer uma trilogia e contar um pouco mais do que aconteceu antes e depois da independência.
A independência se deu pelo ímpeto político dele, mas tiveram outras manifestações no Brasil. Queria que me falasse sobre isso, das guerras que cercaram a emancipação.
A independência não foi só o grito do Ipiranga. A começar pela ação maravilhosa de Leopoldina, que assumiu o trono de Maria, tinha muita devoção a nossa senhora, ia muitas vezes à igreja Nossa Senhora da Glória, no Rio, e ao Convento de Santo Antonio, que tem uma importância muito grande pela sabedoria dos monges franciscanos. Inclusive eles ajudaram muito no plano da independência, uma história oculta que está sendo revelado pelo livro Os Pilares da Independência do doutor Evandro Pontes, que é um dos nossos entrevistados. E a Dona Leopoldina assumiu a regência do Brasil no dia 13 de agosto de 1822, quando Dom Pedro vai para São Paulo. Ela que comanda junto com os ministros do governo do Brasil. É a primeira mulher das Américas a ocupar um cargo de chefia de estado. Depois, com a independência, ela passou a ser a primeira regente imperial do Brasil e de toda América, porque Dom Pedro estava em viagem. O que ela aprovava era referendado por ele. E no dia 2 de setembro é ela, junto com o conselho de Ministros e com apoio de José Bonifácio, que lavra, assina a ata da independência. Praticamente ali já estava decretado ainda de forma secreta e esse documento tem também a ‘assinatura’ alimentada pelos sábios frades franciscanos, do Convento de Santo Antônio, que alimentaram, discerniram, eram confessores da família real. Ela assina e depois é comunicado a Dom Pedro no Ipiranga junto com as cartas que vieram de Portugal. O que aconteceu é que quando Dom João VI veio para o Brasil fez a abertura dos portos. O país ficou sem soberano, com os franceses invadindo. As tropas portuguesas lutaram contra as de Napoleão com a ajuda dos ingleses. Mas a política adotada foi a de terra arrasada. Destruíram tudo para o inimigo não sobreviver, no entanto o povo português não entendia como o rei podia ir embora. Isso suscitou um espírito revoltoso, semelhante ao da revolução francesa, e culminou na Revolução do Porto, um ponto de virada. Porque se tivesse vencido um ideal revolucionário, a coroa de Portugal poderia ter caído e o Brasil ser fragmentado em muitas partes. Há um caso que quero salientar, que é o bicentenário da morte de Frei Galvão, em que fizemos o filme O Arquiteto da Luz, sobre a história do primeiro santo brasileiro. Coincidente ele faleceu em 1822. Teve uma visão telepática da guerra do dia 24 de agosto de 1820 no porto, um ponto bem nevrálgico, que poderia ser o fim de Portugal e do Brasil. Ele pede para tocar os sinos do Mosteiro da Luz, que ele construiu em São Paulo, e convoca a comunidade para rezar. Diz: ‘rebentou uma revolução em Portugal, vamos rezar’. E eu creio, na fé, que essas orações também ajudaram a revolução ser dissipada e tudo ser colocado na melhor ordem de justiça, mas no ano seguinte Dom João VI está lá, sem poder nenhum, e aí as cortes de Lisboa pedem a volta de Dom Pedro. Tudo isso vai culminar na decisão do dia 2 de setembro e o referendo no dia 7.
E e este documentário está disponibilizado?
Sim, estamos fazendo algumas sessões no nosso YouTube, e vamos ter mais ações também. Temos um programa chamado Frei Galvão vai às Comunidades, que vamos ter lives, podcasts, concertos de música que eu compus, em parte clássica e parte regional do Vale do Paraíba. Ele nasceu em Guaratinguetá, teve essa visão da Revolução do Porto, e tudo está muito interligado. Também esse ano é bicentenário da consagração do Brasil a Nossa Senhora Aparecida. Dom Pedro, quando está em Aparecida, faz uma promessa santa pedindo apoio para a independência. Se isso fosse a vontade de Deus, faria a consagração do país à ela. E no dia 8 de setembro, em missa solene, faz essa consagração. Estamos comemorando várias efemérides importantes, como essa.
Passados 200 anos desse episódio, você acha que o Brasil é independente?
Temos, de certa forma, uma independência com fatos extraordinários. É extraordinário que tenhamos um país unido, com uma língua única. Existem 125 diferentes línguas faladas no país, vários idiomas indígenas, uma riqueza linguística. Mas todos falam portugues, todos são irmãos, não há guerras civis, não há facções como em países da Europa. Há uma miscigenação maravilhosa das raças. Todo mundo está muito integrado. Por mais que queiram criar conflitos de classes, isso não acontece. A alma brasileira é maravilhosa e temos só que agradecer a Deus por essa independência e liberdade que temos. Não quer dizer que não tenhamos forças contrárias agindo internamente e a cobiça de países estrangeiros. Mas é outro milagre que não tenha havido nenhuma tentativa de posse à força do país. Pensando bem, temos um mar maravilhoso, uma via não explorada de comunicação de capitais brasileiras, mas essa fronteira é aberta. Peçamos a Deus que mantenhamos essa independência. Existem forças políticas, pensamentos contrários, criminalidade, corrupção, mas precisamos ficar livre dessas coisas, ‘independência ou morte’ de novo.
(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)
Publicada em 28 de setembro de 2022