“Maior desafio do projeto de reforma do Museu Paulista foi conciliar restauração da construção original com ampliação do prédio”, diz o arquiteto Eduardo Ferroni

Foto: Arquivo Pessoal

Uma das joias arquitetônicas de São Paulo, o Museu Paulista foi projetado pelo arquiteto italiano Tommaso Gaudencio Bezzi (1844-1915) como um edifício-monumento e inaugurado em 1895. Passou por várias reformas e alterações ao longo de sua história até ser fechado em 2012, com infiltrações e outros problemas que ameaçavam seu acervo. Após uma reforma iniciada em 2019 e orçada em R$ 211 milhões, o complexo no bairro do Ipiranga ressurge como um imponente cartão postal da capital paulista, com o dobro da área útil do projeto de Gaudencio Bezzi e inúmeras intervenções modernas para adequar o prédio às exigências de um museu do século 21. O escritório encarregado do projeto de reforma, H+F Arquitetos, venceu uma licitação e teve um ano e meio para viabilizar as mudanças, num esforço que envolveu cerca de 200 profissionais de várias áreas. Eduardo Ferroni, que empresta o “F” ao nome do escritório (o “H” é do arquiteto espanhol Pablo Hereñu), revela na entrevista a seguir como conseguiu ampliar o prédio sem desconfigurar o projeto original, reaproveitando vários materiais usados na construção que agora ficaram visíveis. Outro desafio foi na área de ventilação, essencial na preservação de acervo de um museu – a configuração original não previa ar-condicionado. Além do Museu Paulista, que será reinaugurado no dia 6 de setembro, o escritório H+F Arquitetos também venceu uma licitação da Unesco e já está trabalhando no projeto de restauração do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista (RJ), destruído por um incêndio em 2018.

O trabalho arquitetônico de ampliação e restauro do Museu do Ipiranga foi idealizado por uma equipe de 12 profissionais do escritório H+F Arquitetos, com consultoria de outros seis. A proposta venceu um certame em que eram 13 candidatos. Quanto tempo foi necessário para elaborar o projeto de reforma?

Quando participamos do concurso de projetos, a equipe era essa que você citou. A licitação exigia um trabalho qualificado, com base técnica, naquilo que está sendo proposto. Era muito interessante como processo de contratação de projetos públicos. O projeto vencedor foi escolhido por um júri de fora, por especialistas em patrimônio e da USP, o que fez com que as decisões mais difíceis – como escavar, por exemplo – fossem transparentes desde o início. O tempo de execução do projeto foi de um ano e meio, que é um tempo bem curto para um projeto que envolveu prospecções no prédio para investigar a estrutura. Tivemos 20 equipes contratadas por nós, cada equipe com cerca de 10 pessoas. Ou seja, o projeto envolveu em torno de 200 pessoas.
  

Quais foram as principais referências usadas no projeto?

As referências são muitas, mas uma muito importante foi a do próprio prédio original, projetado pelo arquiteto italiano Tommaso Gaudencio Bezzi (1844-1915), que é muito interessante, com várias peculiaridades. Tinha uma estrutura arrojada para a época em que foi feito, com uma técnica construtiva que em grande parte vem da Itália. Tem grandes arcos de tijolos estruturais, que não são vistos de fora. As estruturas são muito sofisticadas – não era comum em São Paulo uma estrutura desse tamanho, com uso de ferro e de madeira, além desses tijolos. Uma das coisas que quisemos fazer foi permitir às pessoas poder ver essas estruturas que antes não eram acessíveis e são muito ricas em técnicas construtivas. Isso é uma referência — conhecer é uma parte importante da preservação. Aliás, intervimos bastante. Além do prédio, também buscamos referências em vários museus importantes, que enfrentaram esse mesmo problema que o Museu Paulista, que precisava ampliar o prédio. Vale lembrar que ele não foi construído para ser museu. Então faltava espaço de acolhimento de público – chegada, guarda-volumes, auditório, banheiro, etc. Tem o Museu do Louvre, que é uma obra sempre lembrada como referência, pois também teve uma ampliação feita no subsolo. Mais recentemente, teve uma obra no Neues Museum, de Berlim, na Alemanha – outra ampliação que acolhe público e amarra com as construções existentes. Em paralelo com a ampliação, tem o projeto de restauro, que procurou revelar e trazer à tona as características mais marcantes da construção original. É um trabalho importante porque você vai despojando o prédio de tudo aquilo que ele foi ganhando com o tempo, às vezes com interpretações erradas do que ele tinha sido.  Tem também um trabalho de remoção de tintas.


O escritório H+F Arquitetos já tinha participado de uma licitação desse tipo?

Sim, tínhamos feito alguns projetos. Mas, antes desse, participamos de um concurso de um museu que não foi construído ainda, mas é importante na área cultural. Trata-se de um casarão na Avenida Paulista (Palacete Joaquim Franco de Mello, construído há 117 anos) que está abandonado e vamos requalificar e ampliar. É um projeto do governo estadual de São Paulo que ainda não saiu do papel, para abrigar uma instituição voltada para a diversidade sexual. Já existe uma instituição que trata disso no governo, mas que ainda não tem um espaço de representatividade pública à altura do tema. Participamos do concurso e o projeto trata de questões parecidas, numa escala menor: é uma construção antiga que precisava de uma ampliação e reconfiguração de sua infraestrutura e a execução está sendo feita.

Pensando na infraestrutura do complexo do Ipiranga, quais foram os principais desafios em termos de projeto para modernizar uma construção de quase 130 anos e que tinha problemas quando foi fechada, em 2012?

O prédio já tinha problemas de uma intervenção que foi feita nos anos 1950. Ele precisava de uma consolidação da parte das fundações e sempre teve vazamento nos telhados. Os forros sofriam com umidade — eram feitos de fibra de caule do tronco de palmito jussara. Essa fibra é natural, molhando, acaba estragando. Ela é muito interessante como técnica construtiva. Por isso, recuperamos essa técnica, optamos por não trocar. Além disso, tivemos de prover a estrutura que o prédio não tinha. Um exemplo é o novo espaço de acolhimento, que tem o mesmo tamanho do prédio. Ou seja, duplicamos a área útil do museu, para receber público, novas salas de exposição com sistema de climatização que as obras contemporâneas requerem, gerador, toda a parte de segurança contra incêndio, sprinklers. Tudo isso tem uma infraestrutura nova e o nosso desafio foi fazer essas infraestruturas chegarem ao prédio antigo. O principal e mais difícil é a circulação de pessoas – ligar o novo acesso ao original. Para nós era muito importante fazer o público chegar no mesmo saguão que o público sempre chegou, no prédio antigo. Para isso, inserimos um sistema de escadas rolantes e um elevador que perfuram o interior do solo, por baixo do edifício. E fazem com que essas circulações aflorem no saguão original. Então a inserção desses equipamentos de circulação de público foi um desafio do ponto de vista da engenharia estrutural, que é a escavação de valas e túneis, um deles para acessar o elevador, mais uma vala para escadas rolantes que passa embaixo do prédio. Essa construção foi muito monitorada, delicada e discutida com técnicos da USP. Outro desafio foi inserir, dentro do prédio, de forma discreta, um sistema de circulação de público com elevadores, com sanitários acessíveis, podendo chegar até a cobertura do prédio, onde se tem uma vista muito especial da cidade. Isso tudo precisou ser inserido de forma discreta na torre central do prédio, foi um desafio técnico e arquitetônico importante.

Vamos falar dos novos espaços contemplados no projeto, por sinal muito elogiados. Quais foram as mudanças mais relevantes em relação à planta antes do fechamento?

Uma das novidades foi a construção de um grande salão de chegada, que chamamos de espaço de acolhimento, com bilheteria, café e lojas. Tem também salas de aula e de pesquisa – que é uma parte muito importante do museu, que é universitário, para produção de conhecimento. Antes não havia esses espaços de forma integrada dentro do prédio. Outra novidade é o auditório e uma sala nova de exposições de 900 metros quadrados, pé direito duplo e toda climatizada, para receber exposições itinerantes ou que requerem controle climático mais eficiente. E, também, espaços administrativos e técnicos, que formam uma parte enorme do prédio – gerador, ar-condicionado, reserva de incêndio e etc.

Chama a atenção a ausência de ar-condicionado nos ambientes mais amplos. Como vocês conseguiram obter uma solução térmica confortável que abrisse mão de climatizadores?

Esse é um ponto fundamental, que diz respeito a forma como as instituições estão se vendo no futuro e como a arquitetura pode contribuir para uma visão mais consciente no uso de energia e da manutenção dos ambientes a longo prazo. Há muitos estudos feitos no Brasil e em países tropicais sobre como os museus podem enfrentar o problema da climatização diante da impossibilidade de se manter os sistemas de climatização como existem na Europa. É muito comum um museu construir uma biblioteca usando como modelo padrões europeus de climatização e depois não conseguir manter esse funcionamento. Às vezes, funcionar dia sim e dia não ou precariamente é muito pior para o acervo do que não climatizar. Ao mesmo tempo, existe uma reflexão sobre como se faz uma gestão energética mais consciente nos edifícios. Considerando que se trata de um prédio público, tem a questão da economia e precisão na tomada de decisões. Fizemos um estudo com as equipes de manutenção do museu para analisar e avaliar as condições de cada sala, considerando que pode ter. Por isso construímos duas salas e uma reserva técnica temporária na parte nova da ampliação. E essas salas seguem os parâmetros internacionais de climatização, mas não estão dentro do prédio antigo. Um prédio construído no século 19, em muitos casos, pode ser danificado pelo sistema de controle de umidade – se tira a umidade pode danificar os próprios elementos construtivos de um edifício antigo. Além disso, o prédio tem uma configuração que é favorável para fazer o que chamamos de sistemas passivos de obtenção de conforto ambiental nos níveis desejados. Para isso, fizemos uma modelagem de computador com estudos sobre comportamentos climáticos do prédio durante o ano que nos levou a fazer várias intervenções para melhorar o desempenho climático do edifício sem, no entanto, inserir maquinário. Existem algumas situações especiais, em que ocorre extração de ar, aí sim, com uma máquina — mas que não altera a temperatura, ela não extrai umidade nem insere ar frio dentro do edifício, só melhora a condição de ventilação. Na maioria dos casos, são ajustes feitos nas próprias janelas e claraboias. Todas as coberturas foram refeitas, com isolamento e sistema de ventilação natural. O prédio passou a ser todo ventilado naturalmente, com sistemas de proteção contra insetos e pássaros. É confortável, mas não requer ar-condicionado – o que é possível fazer numa cidade como São Paulo. O clima aqui ajuda. 

A arquitetura contemporânea busca sempre sugerir soluções eficientes de sustentabilidade, como essas citadas sobre climatização. Quais são outras inovações sustentáveis que vocês propuseram para o complexo?

Essa é uma preocupação que deve ser central em qualquer ação que é feita na construção civil. O custo energético da construção e o custo da manutenção, em tudo isso a arquitetura pode contribuir – independentemente se é arquitetura contemporânea, moderna, barroca ou de estilo eclético, como o prédio do Museu Paulista. A intervenção feita no prédio envolveu várias desmontagens. Para inserir a torre nova de circulação de público, a gente desmontou grandes treliças de madeira lavrada, de grande qualidade e em boas condições. Essa madeira foi reabilitada – ou seja, em grande parte foi desdobrada em peças menores para fazer piso. O mesmo valeu para todas as coberturas do prédio, que tivemos de reajustar, que tinham vazamento. Usamos o mesmo cobre que estava lá. Analisamos todas as chapas de cobre e as que estavam em boas condições foram reinseridas com outros desenhos.  Portanto, tomamos a decisão de reutilizar os materiais que estavam lá, mesmo tijolos, em grande escala.

Com a reforma, o museu vai dobrar de área útil. E a capacidade de público também será dobrada?

Vai depender da gestão. Mas o prédio terá condições de receber de 3 a 4 mil pessoas por dia.


Você acha que a reforma do Museu Paulista deve estimular uma recuperação na mesma linha do Museu Nacional, outro patrimônio histórico de nosso país, que pegou fogo em 2018?

Sim, sem dúvida. No caso do Museu Nacional, nosso escritório é o que está fazendo o projeto, num processo de licitação conduzido pela Unesco. É uma responsabilidade muito grande. A experiência acumulada nos ajudou e vamos aproveitar algumas ideias. Claro, as condições no Museu Nacional são diferentes, incluindo a questão climática e a estrutura do prédio. Existe a necessidade de prospectar, de ir atrás da história do edifício e achar testemunhos das coisas preexistentes, de valor arqueológico.

Mas a ideia é reconstruir o Museu Nacional na forma original?

Não, até porque não existe a “forma original” – o Museu Nacional é uma somatória de construções, que foram sendo somadas desde o século 19, demolidas e reconstruídas. Então, não adianta tentar achar a primeira versão, não é por aí. Uma vez que o prédio passou por essa catástrofe, é possível ir mais fundo na pesquisa de materiais, para buscar mais informações dentro das paredes, debaixo dos pisos. Tem muita coisa boa que o prédio pode revelar de sua construção. Tem uma parte de restauro externo, da fachada – esse projeto não é nosso e, esse sim, vai reproduzir o estado em que ela estava antes do incêndio. O nosso projeto é para dar uma reconfiguração interna da infraestrutura. Mas o cronograma de obra ainda vai levar um tempo.

Você acha que o Brasil de fato é um país independente?

Acho que o Brasil ainda é um país atrasado, por causa de questões como desigualdade e racismo, que precisam ser superadas para chegar próximo das nossas expectativas.

(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)

Publicada em 24 de agosto de 2022

Veja também
Brasil Jazz Sinfônica faz releitura do Hino da Independência com os sons da obra do Museu Paulista para homenagear trabalhadores e celebrar o bicentenário
Leia mais
“A escravidão da colônia e do império foi trocada pelo racismo na era republicana”, diz a historiadora Ynaê Lopes dos Santos
Leia mais
“Surgimento da moda, no século 19, fruto da Revolução Industrial, mudou o papel da mulher no Brasil do Segundo Reinado”, diz a historiadora Joana Monteleone
Leia mais