“D. Pedro I foi um líder progressista, mas com personalidade autoritária”, afirma a historiadora e biógrafa Isabel Lustosa

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Foto: Arquivo Pessoal

Polêmico, D. Pedro I entrou para a história não só por ter conduzido a independência de Portugal, mas por ter se mostrado um líder político e na vida privada uma pessoa extremamente contraditória. Foi amado pelos brasileiros, mas teve de abdicar do trono e se exilar, entre outros motivos, pela forma autoritária com que governou o país. Maltratou aliados e humilhou a esposa, a imperatriz Leopoldina, não fazendo a mínima questão de esconder o romance escandaloso com uma amante, Domitila de Castro e Melo, a Marquesa de Santos. “Mas D. Pedro exerceu um papel fundamental, do ponto de vista institucional, na história política do Brasil e na implantação do liberalismo em Portugal”, assegura a historiadora Isabel Lustosa, pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa, na entrevista a seguir.  Doutora em Ciência Política e especialista em história política e cultural brasileira, Isabel foi pesquisadora titular por três décadas da Fundação Casa de Rui Barbosa. Escreveu 17 livros, incluindo uma das melhores biografias já feitas sobre o imperador brasileiro, D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter, editado pela Companhia das Letras.

O título da biografia que a sra. escreveu sobre D. Pedro I dá uma amostra desse perfil contraditório do imperador – um herói sem nenhum caráter.  O que, na sua opinião, marcou mais a trajetória de D. Pedro: o heroísmo ou a falta de caráter?

Acho que o heroísmo venceu no final. D. Pedro era um jovem passional, às vezes violento, e intenso em sua paixão pela Marquesa de Santos, a ponto de causar muito sofrimento para a imperatriz Leopoldina, inclusive levando-a à morte. A depressão profunda que Leopoldina entrou em sua breve vida – ela morreu com apenas 29 anos – foi causada por maus-tratos psicológicos. Ao lado disso, ele enfrentou várias situações. A primeira delas, a mais importante, foi a decisão de ficar no Brasil. Ele hesitou muito, mas decidiu ficar ao lado dos brasileiros, que não queriam que ele voltasse para Portugal. A partir daí, enfrenta situações como a convocação da Assembleia Constituinte (junho de 1822), que ele aceita e defende — mas depois dissolve, no meio de confusões –, as campanhas em que ele investe (declaração de independência) e, principalmente, depois, em 1831, a ida dele para Portugal para lutar pelo trono da filha. Ali de fato ele mostrou desprendimento, coragem e até uma generosidade com seus soldados que marca a sua despedida no leito de morte, quando chama um combatente e o abraça. D. Pedro teve rasgos de heroísmo, mas exerceu um papel fundamental, do ponto de vista institucional, na história política do Brasil e na implantação do liberalismo em Portugal. O fato de ele ter sido um constitucionalista, que acreditava no papel fundamental das constituições, teve uma influência decisiva na história desses dois países.

A história de vida de D. Pedro I chama a atenção de como as coisas aconteceram para ele sempre de forma precoce. Chegou ao Brasil com a família real com 9, 10 anos – uma criança –, começou a governar o Brasil como regente aos 22 anos, declarou a independência aos 23, abdicou e teve de se exilar na Europa aos 32 anos e morreu de tuberculose aos 35 anos. O processo de independência em si foi rápido, com muita pressão. Gostaria de saber como ele lidou com essa falta de experiência política nesse período: na sua opinião, ele agiu sempre de maneira reativa ou conseguiu manter algum controle e planejar ao menos parte de suas decisões políticas?

Ele foi impulsionado pelos acontecimentos, mas tinha sua visão das coisas, do que era ideal. Nas cartas que ele depois envia para o filho, D. Pedro II (que ainda era uma criança), uma espécie de testamento político, ele avisa que os reis agora não mandam sozinhos, eles têm de partilhar o poder. Mostra uma visão moderna da política naquele contexto. Ele construiu essa visão com 22 anos, claro que ainda não a tinha — era apenas um rapaz mantido fora das decisões políticas por uma série de receios que os ministros de D. João VI tinham e o próprio ciúme do rei em relação ao herdeiro, essas coisas que acontecem em todas as famílias reais. Mas o fato é que ele teve um duro aprendizado ficando no Brasil como regente e, depois, enfrentando as tropas portuguesas que, teoricamente, estavam aqui para defendê-lo e se voltaram contra ele depois do episódio do Fico (9 de janeiro de 1822). Enfim, foi um aprendizado e, ao mesmo tempo, com tomadas de decisões difíceis. No primeiro ano, D. Pedro se apoiou muito no José Bonifácio, mas depois ele se separou de Bonifácio e continuou reinando com pessoas menos capazes, seguindo em frente. Enfrentou a Confederação do Equador com muita violência – o que contou negativamente para o futuro político dele –, depois teve de enfrentar um Legislativo hostil, a partir de 1826, e uma guerra desastrosa na Cisplatina, entre 1826 e 1828, quando o Uruguai se separa e vira um país. Ao lado disso, havia uma resistência no Brasil a essa ambiguidade dele com relação a Portugal — D. Pedro era português, mas se declarava brasileiro; mas, depois da morte do pai, viveu um terrível dilema que era o de ser rei de Portugal e imperador do Brasil. Ele não queria abrir mão, mas teve de se contentar. A herdeira do trono português (d. Maria da Glória, sua filha), que ele havia abdicado, era uma criança e ele continuou tocando essa política, o que desagradava aos liberais brasileiros – que o viam agindo como um Pedro IV (título da Coroa portuguesa), mas usando recursos do Brasil para fazer essa política. Então ele sofreu uma oposição muito forte a partir de 1826 e essa oposição culminou com sua abdicação, em 1831.


Há registros de que d. Pedro, ainda no final de 1821 – antes, portanto, de anunciar a independência –, estaria disposto a fazer tudo o que as Cortes Constitucionais Portuguesas queriam dele, com medo de ser destituído como herdeiro do trono. Mas teria sido demovido pela imperatriz Leopoldina. Além de José Bonifácio, ela de fato influenciou de forma decisiva D. Pedro a desafiar a Coroa e a declarar a independência?


Sim, ela teve um papel fundamental. A imperatriz Leopoldina era uma pessoa muito mais culta que ele, tinha um conhecimento da política de uma perspectiva absolutista e legitimista da Santa Aliança – da qual o pai dela, pela Áustria, era um dos membros –, mas ao mesmo tempo ela também viveu um aprendizado político na prática. Talvez por isso teve uma visão mais clara. O grande biógrafo dela, Carlos Henrique Oberacker Jr, diz que nas conversas dela com Wenzel de Mareschal, embaixador da Áustria no Rio, e depois com Bonifácio, que ela formou um sentido de pertencimento do Brasil e da vantagem para sua dinastia, a dos Habsburgos – o que fazia parte do pacto do casamento dela, de trazer um ramo para a América. Então, ela viu que era mais interessante, para ela e seu marido, permanecer no Brasil e fazer um pacto com os brasileiros. Isso porque os brasileiros, ao contrário dos portugueses, não estavam se propondo a submeter o príncipe, como D. João VI ficou submetido à Assembleia portuguesa. Ela achava que era mais vantajoso e trabalhou decisivamente — as cartas dela para a família demonstram isso. Ela sempre foi muito discreta, permanecendo sempre nos bastidores. E realmente teve um papel importante na história do Brasil naquele primeiro ano da independência. 


Queria abordar uma característica marcante da atuação política de D. Pedro. Primeiro, ele parece ter sido contaminado pelos ideais iluministas da Europa, defendendo o liberalismo e, mesmo de forma discreta, a abolição da escravatura – sendo que a família real e a corte no Brasil eram conservadoras. Isso o frustrava de alguma maneira ou aí podemos dizer que D. Pedro foi pragmático em se adequar ao conservadorismo da elite brasileira?

O tema da escravatura era muito difícil. Ele começa já com o embarque da família real para o Brasil (1807), quando a Inglaterra queria que o tráfico de escravos fosse interrompido. E D. João resistiu muito porque a fonte da riqueza brasileira, o açúcar e todos os produtos, só existia porque havia mão de obra escrava – não havia um contingente de trabalhadores livres para atender a esse mercado. É uma questão complexa e não é minha especialidade. Mas D. Pedro deu algumas declarações, como “Meu sangue é da mesma cor que o dos negros”, muito em cima do espírito do tempo. Todos sabiam da imoralidade da escravidão, já estava no contexto das ideias do mundo da época, era muito negativo. Mas tinha sempre esse argumento da economia. E D. Pedro não se contrapõe a essa elite até porque essa elite é que vai sustentá-lo, assim como sustentou seu pai. Ele não faz um esforço pela abolição. Ele declara e fica sempre como um projeto — e José Bonifácio tinha esse projeto até com mais clareza, os estudiosos mostram como ele sonhava com um país mestiço, miscigenado, em que o negro e o índio estivessem integrados à cidadania. A visão de D. Pedro, também subordinada à de Bonifácio, as declarações que fez, eram sempre simpáticas, generosas. A prática é que era mais complicada.

Sobre a parte final do governo de D. Pedro no Brasil, que o levou à abdicação: a senhora acha que faltou um pouco de tato em lidar com a crise? Ele acabou saindo corrido daqui, e depois de tudo o que fez teve de abdicar do trono. Faltou experiência política ou suas atitudes faziam parte do jeito de ser dele, impulsivo?

Acredito que ele já estava propenso a sair do Brasil para defender a Coroa da filha. Claro que ele não faria isso sem a pressão das elites brasileiras naquele momento, principalmente as do Centro-Sul, que faziam os movimentos, como até hoje. O fato é que, para ele, a questão portuguesa era um drama existencial. É muito interessante em D. Pedro essa vinculação à tradição, ao legitimismo: ele era o herdeiro legítimo da Coroa portuguesa e seus filhos seriam os herdeiros legítimos da Coroa portuguesa e brasileira. Ele briga por isso e consegue. A ida dele para a Europa talvez não teria ocorrido sem essa campanha violenta contra ele. Quando cai o rei Carlos X, da França, em 1830, os jornais brasileiros repercutem fazendo ameaças de que ele teria o mesmo destino, citando semelhanças. Mas ele não tinha os poderes de Carlos X nem as condições objetivas para exercer um poder absoluto — ele estava brigando pela questão portuguesa. O fato de ele ter abrigado no Brasil muitos portugueses que haviam fugido de Portugal porque estavam contra seu irmão, D. Miguel (que queria usurpar o trono português), acabou contando negativamente – parecia que D. Pedro estava querendo ser o rei de Portugal. Então essa divisão dele, entre Portugal e Brasil, foi marcante. Acho que ele foi hábil e, na sequência dos acontecimentos, manteve a dignidade: não aceitou obedecer ao que a manifestação estava exigindo dele e se baseou na Constituição. Pode ter sido uma leitura peculiar da Constituição, ele tinha também o Poder Moderador, mas de alguma forma saiu com dignidade. Sem falar que vendeu tudo o que tinha no navio, até o faqueiro, o que era uma característica dele. Ele saiu bem, não tinha muita opção, os liberais brasileiros estavam decididos a se livrar dele.

Tomando como exemplo o mundo de hoje, como seria mais adequado classificar D. Pedro: como um político progressista, um líder populista ou governante autoritário?

Hoje não cabe muito essa classificação porque as condições objetivas são diferentes. Ali o que estava acontecendo era o fim do Antigo Regime – baseado no absolutismo, no poder divino dos reis, algo medieval. O que estava sendo revolucionado no mundo, com os iluministas, com as ideias que corriam o mundo, era por uma mudança nessa mitologia em torno dos reis. Essas mudanças eram cheias de contradições – D. Pedro foi um produto dessas contradições. Naquele contexto, ele era um príncipe moderno. É assim que a Europa, quando D. Pedro desembarca na França e depois circula pela Inglaterra, o recebe: como um homem à frente de seu tempo, que havia dado uma Constituição para um país atrasado, como Portugal, e também para “aqueles índios do Brasil”, como nos viam. Portanto, naquele contexto, D. Pedro foi um líder progressista e com uma personalidade autoritária, mas que ao mesmo tempo se adaptou às circunstâncias constitucionais, com respeito às liberdades. 
Vou terminar repetindo uma pergunta que sempre fazemos para os entrevistados da Agenda Bonifácio: a senhora acha que o Brasil é de fato um país independente?

Acho que somos um país independente nas circunstâncias de um país de Terceiro Mundo, que é a nossa América Latina, produto de uma história colonial. Essa questão colonial persiste na concentração da riqueza no outro hemisfério, digamos assim. Nossa independência existe, temos instituições e nenhum Estado ou país pode nos dizer o que fazer, então somos independentes. Mas nas circunstâncias que são independentes países mais pobres que acabam tendo de negociar, como com o FMI ou com os poderosos, e às vezes fazer concessões que prejudicam seus interesses, ou pelo menos os interesses da maioria do povo – mas podem ser muito úteis para determinados setores da elite. Portanto, o Brasil é independente com essas contradições dos países do Terceiro Mundo.

(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)
Publicada em 29 de junho de 2022