“Ascensão de Oliveira Lima mostra que o toma lá dá cá, marca da política brasileira, teve início já no começo da república”, diz o jornalista e historiador Maurício Oliveira

Uma das práticas mais condenáveis do período monárquico, que impulsionou a campanha pela Proclamação da República, era justamente a facilidade que os “amigos do rei” tinham para obter emprego e vantagens políticas, o que era negado aos demais brasileiros. Ao desenvolver sua tese de doutorado, o jornalista e historiador Mauricio Oliveira descobriu que a troca de favores já rolava solta no começo da república. Oliveira chegou a essa constatação por acaso, ao pesquisar a trajetória do historiador, diplomata e jornalista Oliveira Lima, personagem ilustre do começo do século 20 – apesar de viver no exterior desde a infância, foi autor de uma importante biografia de D. João VI e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito com 30 anos e apenas uma obra publicada. A despeito de favorecimentos, o autor destaca a trajetória de Oliveira Lima, um dos intelectuais mais influentes do início do século 20, que montou uma das maiores coleções brasilianas – livros raros que têm o Brasil como tema –, abrigada na Universidade Católica de Washington, no EUA. “Oliveira Lima obteve empregos e vantagens graças à rede de contatos pessoais que foi cultivando, principalmente por meio de troca de cartas, com políticos e intelectuais conhecidos de seu tempo, como Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Rui Barbosa, o Barão do Rio Branco, Euclides da Cunha e o jornalista José Veríssimo, entre outros”, diz Maurício Oliveira, cuja pesquisa resultou no livro Toma lá, dá cá – Como a troca de favores moldou a sociedade e o jornalismo no Brasil (Editora Ornitorrinco), adaptado de sua dissertação. Segundo ele, chama a atenção a evolução das práticas de favorecimento político e troca de favores, que hoje é simbolizada pela distribuição de verbas a deputados via orçamento secreto. “Quando a gente compara o que vemos hoje na política brasileira com a época do Oliveira Lima, aquelas práticas soam um tanto ingênuas — eram trocas de favores mais do nível pessoal –; o que mudou é a proporção”, diz o acadêmico, na entrevista a seguir. Maurício Oliveira é autor de mais de 30 livros, entre eles, Amores Proibidos na História do Brasil; Garibaldi, Herói dos Dois Mundos; e Patápio Silva, o Sopro da Arte.
Antes de explorar como se estruturava essa rede de contatos pessoais no começo da República, queria que você falasse um pouco do Oliveira Lima, um personagem enigmático: saiu do país aos 5 anos de idade com a família e passou a maior parte de sua vida no exterior. Mesmo assim ficou muito conhecido por aqui, como historiador, jornalista e diplomata.
Oliveira Lima viveu nessa virada do século 19 para o século 20 e, nas minhas pesquisas, ele foi se revelando o símbolo dessa troca de favores que existia nessa época de transição da monarquia para a república. Inicialmente nem era o meu objetivo pesquisar a troca de favores, mas esse assunto foi se impondo à medida que a pesquisa evoluiu e fui percebendo como ele foi tecendo essa rede de apoio, baseada muitas vezes no tal toma lá dá cá que dá título ao livro. Oliveira Lima era filho de um comerciante português radicado no Recife e nasceu temporão – tinha irmãos bem mais velhos. Quando ele tinha 5 anos de idade, o pai decidiu fechar sua casa de comércio e voltar para sua terra. Morou com os pais em Lisboa. Ainda em Portugal, quando era adolescente, ele criou um jornal para falar de assuntos brasileiros e passou a se comunicar por cartas com vultos nacionais. Por exemplo, com Joaquim Nabuco (1849-1910), que era 13 anos mais velho e já era conhecido como grande defensor da abolição da escravatura. Oliveira Lima escreveu um perfil elogioso sobre ele, enviou para Nabuco e se apresentou. A partir daí, estabeleceu uma relação com ele, que lhe seria útil no futuro. Ele fez o mesmo com outros intelectuais – era muito habilidoso ao construir essa rede. Outro exemplo é José Veríssimo (1857-1916), que era um crítico de literatura muito importante, editor da Revista Brasileira — publicação que juntou a geração fundadora da Academia Brasileira de Letras (ABL). Ele fez um contato desse tipo, com a diferença que teve a oportunidade de conhecer o Veríssimo pessoalmente, quando ele participou de um congresso em Lisboa. Quando percebeu que a monarquia estava condenada no Brasil, no ano anterior ao da Proclamação da República, ele escreveu alguns artigos na imprensa de Portugal defendendo a mudança de regime. Nos momentos turbulentos, pós instalação da república, ele continuou defendendo o regime — o que contrariava a posição dele, pois sempre havia apoiado a monarquia. Então, de certa forma, ele foi interpretando os sinais. Quando chegou aos 20 anos, ele precisava decidir o que iria fazer da vida. Exatamente nesse período, o pai faleceu e as condições da família mudaram, já que não poderiam mais viver de renda — o pai, em Portugal, apenas desfrutou o que tinha acumulado no Brasil. Oliveira Lima tinha se formado em Letras porque não tinha condições de pagar o curso de Direito na Universidade de Coimbra, que era o destino mais desejado pelas famílias tradicionais. Ele imaginou que um bom futuro para si seria voltar ao Brasil e, aqui, se estabelecer em algum campo ligado à vida intelectual. Ao arquitetar um plano para se estabelecer no Brasil, ele já tinha tudo isso como trunfo: os contatos que havia estabelecido com pessoas importantes e esses artigos pro-república. Esse conjunto foi suficiente para ele conseguir a nomeação de diplomata pelo novo governo republicano. Ele se apresentou como defensor da república na Europa, tinha alguns aliados – incluindo dois cunhados que já eram diplomatas, que o haviam apresentado a pessoas influentes no Brasil. Ou seja, se armou de todos os lados. Começou sua trajetória de diplomata aqui no Brasil, mas logo saiu do país, sendo enviado para os Estados Unidos, depois para a Bélgica, em seguida para o Japão. Ele praticamente não viveu no Brasil, mas tinha muitos contatos pessoais aqui. Considero ele como precursor das redes sociais – só que, em vez de Facebook e Instagram, ele usava as boas e velhas cartas, era um missivista compulsivo, escrevia várias cartas por dia e exigia que os interlocutores respondessem. Foi assim que construiu as relações no início da trajetória dele.
É interessante a faceta de historiador do Oliveira Lima. Ele escreveu vários livros – o marco referencial é a biografia ‘D. João VI no Brasil’ – e, como você aborda no livro, ele usou o cargo de diplomata para aprofundar as pesquisas para seus livros quando estava na Europa.
Ele teve uma trajetória em que manteve três atividades em paralelo: era diplomata, historiador e jornalista. Aliás, ele continuou escrevendo artigos para a imprensa ao longo de sua carreira diplomática — o que era malvisto e contraditório, pois a diplomacia exigia uma certa cautela e reserva, principalmente na época. E continuou escrevendo artigos supostamente porque ninguém disse para ele que era proibido. Ele usava muito bem no início esse espaço que tinha na imprensa para reforçar seu papel de diplomata e historiador. No seu primeiro cargo diplomático, nos Estados Unidos, por exemplo, ele escreveu crônicas sobre o país de uma forma elogiosa, numa época em que a relação do governo brasileiro com o dos EUA era bem-vista pelo governo republicano – ou seja, ele reforçava essa aproximação com os EUA. Portanto, no começo dessa trajetória, essa atividade jornalística – que foi o foco inicial da minha pesquisa – não atrapalhou a atividade diplomática nem foi malvista porque ele a usava para reforçar os interesses do país. O mesmo se dava com as pesquisas históricas: ele sempre dava um jeito de conciliar as viagens ou pedia licença do Itamaraty. Ele defendia a ideia de que um diplomata não era apenas um representante do país em solenidades e jantares, mas tinha o papel do que chamava de “diplomacia cultural” – disseminar a cultura de um país em outros. Portanto, nos primeiros anos, ele conseguiu levar muito bem essas três atividades, de tal forma que uma reforçava a outra. A diplomacia, no fundo, era apenas uma estratégia que ele tinha para ter um salário fixo. Como muitos outros intelectuais da época, tanto a diplomacia quanto o jornalismo eram fontes de renda para que eles se dedicassem a escrever livros. Então, ele foi levando e sendo tolerado, crescendo muito com isso, tanto que muitos artigos que ele escrevia eram publicados na Revista Brasileira. Quando o Veríssimo organizou a criação da Academia Brasileira de Letras, ele acabou inserindo o Oliveira Lima na ABL, embora fosse o mais jovem de todos e tivesse apenas uma obra publicada — que era um livro sobre a história de Pernambuco. Graças a essa articulação, Oliveira Lima chegou aos 30 anos com duas conquistas: era diplomata e membro da ABL. Justiça seja feita, ele honrou essa posição depois, pois teve uma produção intelectual e cultural relevante, incluindo uma das biografias mais respeitadas de D. Joao VI. Poderia ter dado errado, pois quando foi eleito para a ABL ele ainda não tinha uma obra referencial, mas ao longo dos anos honrou a nomeação.
Chama a atenção em seu trabalho a forma com que Oliveira Lima se serviu de duas instituições consideradas essenciais nesse período inicial da República – a diplomacia e o jornalismo – para obter ganhos pessoais. Seria possível imaginar um personagem como Oliveira Lima atuando nos dias de hoje nessas duas áreas e dessa forma? Pergunto isso porque na fase final da vida dele, mesmo sendo diplomata, ele passou a atacar posições do governo brasileiro em artigos na imprensa.
É importante contextualizar como surgiu a ideia de pesquisar o personagem. O Oliveira Lima era um colecionador de livros que acabou juntando uma das coleções brasilianas – ou seja, que têm o Brasil como tema — mais importantes até hoje. Ao longo da vida, ele foi comprando livros desse tema. Ele tinha até representantes que participavam de leilões de livros raros ao redor do mundo e usava praticamente todo o dinheiro que ganhava para comprar livros – era casado com a Flora, de uma família tradicional de Pernambuco, mas não tinha filhos. A biblioteca era seu grande xodó. No final da vida, em função de vários desentendimentos que teve, ele decidiu doar essa coleção para uma universidade dos EUA, a Universidade Católica de Washington. Conheci essa biblioteca, até hoje pouco conhecida e explorada pelos brasileiros, há muitos anos, durante uma visita turística a Washington. Descobri que existia quando preparava a viagem. Sou formado em Jornalismo, mas na época estava fazendo mestrado em História. Mandei e-mail para o coordenador da biblioteca, que não era aberta ao público e tinha de marcar horário para visita. O acervo é incrível. Quando cheguei na seção de cartas, das correspondências do Oliveira Lima, a primeira que peguei na mão era do Machado de Assis… Fiquei encantado e com a sensação de que em algum momento de minha trajetória profissional iria explorar aquele acervo. Quase dez anos depois, eu morava em Florianópolis e a Universidade Federal de Santa Catarina abriu o primeiro doutorado em Jornalismo da América Latina. Tinha feito a graduação de Jornalismo lá e me interessei. Não tinha pretensões acadêmicas, mas de pesquisa. Ao decidir pelo projeto, lembrei do Oliveira Lima – que teve uma grande produção jornalística, apesar de historiador e diplomata. Meu projeto foi aprovado e quando fui até Washington, pesquisei os artigos para jornais e revistas dele guardados na biblioteca e acabei mergulhando no acervo de cartas. Esse acervo me trouxe os bastidores do que considero o maior atrativo do livro, pois nos dá a sensação de estar participando do dia a dia da troca entre personalidades intelectuais da época. Ao comparar o que ele escrevia nessas cartas fui percebendo essa troca de favores, o toma lá dá cá, o quanto a atividade de jornalista muitas vezes era usada para favorecer as outras atividades dele. Tem um exemplo muito claro disso. Por incrível que pareça, ele escreveu uma reportagem sobre a Universidade Católica de Washington, uma instituição privada e recém-fundada na época, 30 anos antes dele fazer a doação da biblioteca particular em troca de um emprego vitalício para ele e a Flora. Porque foi esse o acordo que Oliveira Lima fez: ele doaria o acervo, mas a universidade teria de recolher os livros dele, que estavam em quatro lugares diferentes do mundo – ou seja, teria de pagar pelo traslado – e dar emprego vitalício ao casal (e quem morresse primeiro, o outro teria salário garantido até o fim da vida). É claro que ele não fez nada premeditado. Mas estranhei ele publicar uma matéria grande, na prestigiada Revista Brasileira, sobre uma universidade desconhecida dos EUA. Outro documento muito simbólico que encontrei durante as pesquisas tirou uma dúvida que sempre me deixava intrigado: por que afinal o José Veríssimo, um crítico reconhecido pelo rigor, abriu tanto espaço para um jovem até então pouco conhecido entre a intelectualidade, com apenas um livro publicado? Achei entre os documentos da biblioteca um recibo que demonstrava que o Oliveira Lima não era apenas um colaborador comum da Revista Brasileira — era sócio. Ele tinha comprado parte das ações da revista quando Veríssimo lançou a ideia e precisava de investidores. Ou seja, a relação entre eles não era apenas de um editor com um colaborador. Isso deixou claro porque havia um nível de tolerância maior do Veríssimo em relação ao Oliveira Lima, o que ele não demonstrava com outros intelectuais da época – o caso mais explícito era o de Raul Pompeia, que chegou ao suicídio em função de desgaste e discussões no meio intelectual. A pesquisa primária na biblioteca, nas cartas e documentos, foi demonstrando esse caminho. Com isso, a troca de favores acabou sendo predominante, virando até título do livro. Não imaginava que chegaria nisso, mas o assunto se impôs.
O acervo da Oliveira Lima Library, na American Catholic University, tem 60 mil volumes catalogados. Esse era o tamanho da coleção dele?
Quando Oliveira Lima e Flora estavam lá, o acervo da biblioteca não era tão grande. A universidade trouxe depois outros títulos relacionados não só ao Brasil como à América Latina. Ou seja, o acervo foi ampliado ao longo do tempo. Aliás, o acordo que o Oliveira Lima fez com a universidade previa a construção de um prédio específico para essa coleção, o que nunca foi feito. A coleção está muito bem preservada no subsolo da universidade, num local climatizado.
No livro, você divide a trajetória de Oliveira Lima em dois períodos bem definidos: o primeiro, de grande ascensão pessoal, que vai dos 14 anos, quando funda uma revista para divulgar na Europa assuntos sobre o Brasil, até os 33 anos, quando se consolida como diplomata, jornalista e historiador graças à rede de contatos que criou. O segundo período, de decadência, vai dos 33 anos até a morte, aos 60, marcado pelo rompimento com a maioria de pessoas que o ajudaram a ascender, incluindo Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco. Por que essa mudança tão radical nessa estratégia de troca de favores que sempre se mostrou vitoriosa ao longo da vida dele?
Acredito que o Oliveira Lima foi vítima de sua própria estratégia. A partir de um certo momento, ele tinha a sensação de que poderia ser livre – escrever o que quisesse e até ser crítico ao próprio governo que servia como diplomata. Mas existem alguns pontos cruciais para que isso começasse a acontecer. Ao assumir o Itamaraty, em 1902, o Barão do Rio Branco acreditava que os diplomatas tinham, em primeiro lugar, de cumprir suas funções. O Oliveira Lima sempre demonstrava resistência em atender certas ordens. O Barão chegou a nomeá-lo para um posto na Venezuela, que Oliveira Lima não gostou, porque achava a posição secundária. Em outro momento, quando servia no Japão, o Barão o chamou de volta e Oliveira Lima demorou para retornar ao Brasil para receber as instruções para o posto seguinte – ele deu desculpas esfarrapadas para encerrar o trabalho em Tóquio. Tudo isso foi criando uma animosidade, e o Oliveira Lima era muito transparente nas cartas que escrevia. Muitas vezes ele criticava duramente o Barão nas cartas a outras pessoas, talvez achando inocentemente que aquilo não chegaria aos ouvidos do Barão. Ao mesmo tempo, o Joaquim Nabuco – seu grande ídolo na juventude – foi crescendo na carreira diplomática e isso causou uma certa inveja no Oliveira Lima. Também houve ali um rompimento gradual, até que deixaram de se falar por iniciativa do Nabuco. O mesmo ocorreu, por outra razão, ideológica, com o Veríssimo: o Oliveira Lima se aliou à Alemanha na Primeira Guerra e o Veríssimo – como a maioria dos intelectuais brasileiros – ficou do lado da França. Por diferentes motivos, Oliveira Lima foi criando a fama de turrão, difícil de lidar e, ainda por cima, seguia escrevendo artigos nos jornais criticando e constrangendo o governo. Essas mágoas foram acentuando e ele adoeceu – Oliveira Lima era muito obeso, pesava 160 kg no final da vida, e começou a ter dificuldades. Por isso, quando estava nesta situação difícil na carreira diplomática, ele acabou pedindo aposentadoria. Magoado, encontrou essa saída: mudar-se para os EUA, país que o tinha encantado no início de carreira diplomática. No final da vida, voltou para lá com esse acerto com a Universidade Católica. No testamento deixou claro que, quando morresse, não queria voltar ao Brasil – pediu para ser enterrado onde viesse a falecer e, na lápide, apenas uma inscrição: “Aqui jaz um amigo dos livros”. Assim foi feito. Enquanto Joaquim Nabuco, que também morreu nos EUA, teve seu corpo recebido com grande comoção pública em Recife (ambos eram pernambucanos), o Oliveira Lima foi se fechando e se afastando do Brasil. Por outro lado, tem um aspecto interessante: no final da vida, Oliveira Lima foi abrindo espaço para novas amizades. Ele foi uma inspiração para Gilberto Freyre, Assis Chateaubriand e Barbosa Lima Sobrinho, jovens intelectuais de Pernambuco que Oliveira Lima conheceu no final da vida, quando passou um tempo na chácara da família no estado. Freyre, inclusive, chegou a escrever uma biografia dele, chamada Oliveira Lima, o Dom Quixote gordo. Ou seja, ele foi essa figura contraditória, que fez muitos inimigos, em especial na segunda metade da vida. Minha pesquisa conseguiu mostrar porque teve grandes desafetos e se afastou daquela geração que abriu as portas para ele.
Um aspecto muito interessante desse período inicial da República que você explora no livro é a frustração em relação ao que se esperava de mudança de regime em relação à monarquia. Em vez de acabar com os favorecimentos pessoais e relação de amizades que marcaram o período monárquico, o regime republicano ampliou isso. Podemos dizer que algumas práticas condenáveis do nosso atual sistema político– do loteamento de cargos em estatais por parte de partidos até o surgimento desse orçamento secreto para beneficiar regiões eleitorais de interesse de deputados – representam uma “evolução” do toma lá dá cá iniciado na época de Oliveira Lima?
Não tenho dúvidas de que é uma continuidade. Quando a república foi instalada no Brasil havia a perspectiva de que houvesse mudança de práticas da monarquia – período em que os “amigos do rei” tinham muitos benefícios e desfrutavam disso abertamente. Na prática, porém, não foi o que se viu. Existe uma pesquisa muito interessante do historiador José Murilo de Carvalho sobre a atuação do Rui Barbosa (1849-1823), essa figura tão importante da nossa história, como ministro da Fazenda nos dois primeiros anos da República, entre 1889 e 1891. Nesse período, ele aumentou em 30% o número de funcionários do ministério – foram mais de mil nomeações –, grande parte para atender pedidos de amigos, parentes e correligionários. Murilo de Carvalho comparou as cartas do ministério recebidas nessa época com as nomeações e descobriu o “casamento” dos pedidos com as nomeações efetivadas. Então essa expectativa de mudança das práticas não se comprovou. O que vejo, hoje, é o aumento dessas práticas em proporção, em volume de recursos. Quando a gente compara o que vemos hoje com a época do Oliveira Lima, aquelas práticas soam um tanto ingênuas – eram troca de favores mais do nível pessoal, como arrumar emprego para parente. Havia uma mistura da seara pública com a privada, mas com esses limites de bom senso, se é que dá para usar essa palavra. O que mudou é a proporção, a escala do toma lá dá cá.
Com toma lá dá cá e tudo, você acha que o Brasil é de fato um país independente?
Num mundo globalizado como o de hoje, não dá para dizer que um país seja inteiramente independente. Porém, o Brasil reúne recursos dos mais diversos tipos – naturais, intelectuais e culturais – que fazem com que seja, no mundo de hoje, um país com mais possibilidades de ser independente. Quanto mais valorizarmos o que temos de bom – incluindo a cultura e a nossa história, tema de nossa conversa –, maior a sensação de independência.
(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)
Publicada em 26/10/2022