“A gente tem que usar as efemérides como momento de reflexão e não só de descanso”, diz a historiadora e escritora Lilia Schwarcz sobre o bicentenário da independência

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Considerada a obra que melhor representa o famoso ‘grito do Ipiranga’, Independência ou Morte, de Pedro Américo, é um dos expoentes do acervo do Museu Paulista. Nela, Dom Pedro I, futuro imperador do Brasil, é evidenciado no alto de uma colina verde, com espada em punho, rodeado pelos seus guardas e montado em um forte cavalo. Quem a vê pode até escutar o príncipe declarando a liberdade do país e se livrando do fardo português.

Como sugere a historiadora e escritora Lilia Moritz Schwarcz, que prepara um livro a ser lançado em julho onde estuda a dita obra, é preciso tirar o véu da história e analisar não só essa ocasião como as outras retratadas ao longo da história do país com os olhos críticos. “A gente tem que usar as efemérides como momento de reflexão e não só de descanso”. E completa: “É preciso que a gente desconstrua essas visões por demais oficiais e construa outras mais reais no lugar.”

Lilia é curadora da exposição Vários 22, em cartaz na Galeria Arte132 (veja mais aqui), em São Paulo, até dia 21 de maio, em que analisa de maneira crítica efemérides como o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o bicentenário da Independência, Copa do Mundo e as eleições presidenciais. São 80 trabalhos que propõem um diálogo provocativo. “Nada como a arte para potencializar essa discussão, sensibilizar as pessoas”, justifica. Na conversa a seguir, exclusiva com a Agenda Bonifácio, a historiadora reflete sobre independência, as heranças da escravidão no Brasil, a importância de preservar a memória de uma nação e as nuances da democracia. Confira:

Você é curadora da exposição Vários 22, que retrata pontos importantes da história brasileira, tanto do aspecto cultural quanto político. Gostaria que me falasse como retrata a questão da independência do país na mostra.

Essa exposição é basicamente um diálogo com uma coleção e uma forma de colecionismo. Foi o Telmo Porto que me convidou para fazer essa exposição na Galeria 132 e ele tem uma coleção muito boa, voltada ao século 19, esculturas de indígenas, e uma coleção modernista muito interessante. Quando me convidou expliquei a ele que neste ano de 2022 seria muito difícil expor bronzes ou gessos de indígenas feitos por pessoas brancas. A gente precisa neste contexto justamente chamar atenção como tanto a Semana de 1922 mais falou sobre os outros do que incluiu, como a nossa narrativa oficial historiográfica da independência é muito branca, europeia, bem arrumadinha para presente. A gente precisa, de alguma maneira, atritar. Chamo atenção que não é o caso da gente cancelar nada. Não vamos cancelar a Semana de 1922 tampouco a independência. Mas a gente precisa usar as efemérides criticamente e nada como a arte para potencializar essa discussão, sensibilizar as pessoas. O formato é esse: são obras modernistas, do século 19 acadêmicas, gravuras coloniais e eu convidei uma série de artistas para dialogar, eles foram muito generosos. Vários deles produziram para a exposição. Tem duas telas logo na entrada do Dan Lannes que faz um Dom Pedro muito mais conturbado, cheio de subjetividade, um traço meio nervoso, muito longe dessa visão do ‘ouviram do Ipiranga às margens plácidas’. Também faço uma discussão com os viajantes. O Debret, que esteve no Brasil, retratou a vinda de Dom João, mas estava aqui no contexto da independência, retratou a família real e depois imperial VI, e são gravuras usadas, em geral, como se fosse um retrato ingênuo e não são. Pedi para uma série de artistas para dialogarem tensamente, é claro, com essas imagens. Como a do jantar do Debret (Um Jantar Brasileiro), onde os meninos fazem uma coisa de batalha, então Jaime Lauriano fez uma tela chamada Convites para isso. A ideia é um pouco essa. Não sou contrária às efemérides. Engraçado que muitas vezes viram feriados e nestas ocasiões você não quer pensar. Mas acho que podia-se pensar sobre as efemérides de 22 que são muitas.

Existe a história de Dom Pedro I empunhado de uma espada dando o grito da independência e hoje já sabemos que ela não foi assim. Quem, de fato, foi responsável pela independência do Brasil em 1822?

Essa pergunta vale para o presente: quem vai se responsabilizar e fazer o Brasil virar de fato independente? Penso que a independência é um processo, não é uma data. Estou lançando um livro em julho que se chama O Sequestro da Independência, que justamente discute essas várias versões, camadas da independência. Não começa no 7 de setembro de 1822. A gente pode, por exemplo, falar que ela começa com as conjurações mineiras (inconfidência), a dos Alfaiates (na Bahia),  tampouco termina em 7 de setembro de 1822. Eu diria que talvez o processo se encerre em 1835, com a Revolta de Escravizados Malês (em Salvador). Temos de entendê-la como um processo, não é algo acabado. Outra questão importante de pensar é que na época o 7 de setembro às margens do Ipiranga também foi questionado. Demorou muito para ficar essa a versão oficial, de Dom Pedro no seu cavalo. Então, nesse livro e também na exposição, a ideia é questionar por que essas imagens têm sido muito abusadas por Jair Bolsonaro que agora na motociata se fez retratar – até tratei disso no meu Instagram – como se tivesse na tela do Moreaux (François René-Moreaux) e que em outros momentos se fez retratar como se estivesse na do Pedro Américo. É preciso que a gente desconstrua essas visões por demais oficiais e construa outras mais reais no lugar.

Nesse livro que você vai lançar em julho também destrincha esse quadro Independência ou Morte, do Pedro Américo, a grande obra do Museu do Ipiranga. O que você pode adiantar sobre esse quadro em específico que não dê spoiler do livro?

Você tem de me entrevistar de novo, então (risos). Vou lançá-lo junto com Lucia Stumpf e Carlos Lima, a gente estuda essa tela há muito tempo. Ela acabou virando ícone e por isso transformou-se em um retrato três por quatro da independência, o que não é. É uma tela totalmente construída por cima de uma tela francesa do Meissonier. Isso não é um problema porque telas acadêmicas sempre citam umas às outras, não é um plágio, como dizem também, é uma citação. O próprio Pedro Américo diz isso. Só que ele se apoia em uma tela que monumentaliza o 7 de setembro. A tela original traz Napoleão, a nossa tem Dom Pedro e nós sabemos – Pedro Américo também sabia – como ele estava mudando muito. Não era cavalo, Dom Pedro estava em um burro. Sabemos que a colina não existe, mostro como o terreno era absolutamente plano, além de nós sabermos a razão dele se encontrar às margens do Ipiranga. Os próprios documentos dizem que não estava bem das suas funções intestinais. Mas o que nos interessa mais é discutir, como nessa exposição Vários 22, as potencialidades da arte. Essa tela que teve uma sina terrível, demorou muito para ser exposta no Museu do Ipiranga, porque chegou num péssimo ano, próximo da Proclamação da República e nem o museu foi aberto. O que vai acontecer com ela? Vai ficar enrolada por um tempão – não vou contar para vocês lerem (risos) – e só vai sair para o público em 1922, quando o centenário da independência foi comemorado de forma grandiosa. Depois mostramos como a tela vai ser muito apropriada pela ditadura militar nos 150 anos (da independência) e agora está sendo apropriada novamente, basta entrar no link do governo para ver. Essa é uma tela sinaleira, como outras da exposição, porque elas viram verdade por si só. E o que a gente deve fazer? Tirar o véu dessa imaculada ideia, dessa lenda mesmo, de uma independência pacífica, sem lutas, quando na verdade essa é uma história muito palaciana, colonial, muito branca e masculina.

Os paulistas tomaram a independência para eles, mas o fato é que ela ocorreu de outras formas no Brasil. Queria que você me falasse sobre isso.

A gente sabe que a nossa independência foi muito diferente das que ocorreram em outras partes da América Latina que resultaram em regimes presidencialistas. Aqui viramos uma monarquia cercada de repúblicas por todos os lados e nós sabemos a razão. Porque, de um lado, era preciso um grande símbolo para evitar o desmembramento do país e, por outro lado, para manter a escravidão. Tanto que uma das primeiras colônias com quem é feito um acordo é Angola, justamente porque não se queria a suspensão do fornecimento do perverso tráfico negreiro. E hoje sabemos também – mostramos no livro – que existiram outras independências. Não existiam ‘os brasileiros’, nem no Brasil. Províncias como Salvador, Maranhão, não tinham porque ‘deitar’, falar de fidelidade com o Rio de Janeiro, que era a capital do país desde 1763. E no Piauí, por exemplo, existiram lutas aguerridas, com centenas de mortes. Tudo isso vai contra isso que chamei de ‘lenda da independência’ e desse imperador tão galante, tão grandioso e tudo mais.

A briga pelo poder, pelo que vimos desde o Brasil colônia até os tempos atuais, jamais contribuiu para transformar o país em uma nação unificada, muito pelo contrário. Isso se reflete na política polarizada que vemos hoje?

A história brasileira tem muitos golpes e contragolpes. De muitas vezes em que a população brasileira ficou alijada desse processo político. O da independência é semelhante, ou seja, é um processo muito autoritário, de cima para baixo, feito pelas elites em conluio com o império, o que mostra muito o caráter autoritário dos brasileiros. Escrevi um livro chamado Sobre o Autoritarismo Brasileiro em que parti de duas hipóteses: a primeira é que nosso presente está cheio de passado e a segunda é que nós sempre fomos autoritários. Um país que teve durante quatro séculos um sistema escravocrata como o nosso, e no país inteiro, que naturalizou a desigualdade dessa maneira, só pode ter uma elite muito autoritária. O que me impressiona muito é que o Brasil já se perdeu e já se encontrou muitas vezes. Vamos falar dos anos JK (Juscelino Kubitschek), que parecia outro país. Depois disso veio a ditadura militar que tolheu os direitos dos brasileiros. Em 1988 tivemos 30 anos de democracia. Sempre digo que não existe democracia plena, essa é a especificidade deste tipo de regime. Ela é sempre incompleta, inconclusa, que precisa ser concluída pela nossa cidadania. Após 30 anos tivemos o golpe de 2016, do impeachment da presidenta Dilma (Rousseff), que está provado que foi um golpe, e que depois resultou na subida deste grupo tão retrógrado. Sempre digo que não tenho nenhum problema com centro, com direita, porque acho que a democracia funciona assim, na diferença, na divergência. O meu problema é com governos retrógrados, que querem retroceder os nossos direitos. Nestes 30 anos o Brasil criou uma agenda mais fluida, com mais direitos para as mulheres, para a população LGBTQI+, para as populações negras, todos merecidos. Não são direitos ganhos, são conquistados. E o que esse governo quer fazer é voltar os nossos direitos e  isso não é possível.

A abolição da escravatura começou a ganhar força com a Revolução Francesa e aqui no Brasil só foi decretada pouco antes da proclamação da República. É possível afirmar que essa demora se originou no racismo estrutural e na desigualdade tão latentes no nosso país?

O grande tema da exposição Vários 22 é a questão racial e a manutenção da desigualdade. Não se passa impunemente pelo fato de termos sido a última nação do mundo ocidental a abolir a escravidão mercantil, porque existe escravidão ainda. Nós sabemos que dos 12 milhões de africanos que deixaram o continente, 10 milhões pararam nas Américas com uma mortandade de 2 milhões de pessoas. E desses 10 milhões, 4,8 milhões tiveram como destino o Brasil. O país também teve escravizados de norte a sul, naturalizou este tipo de mão de obra que podia ser vendida, leiloada, penhorada e criou um sistema em que a violência é uma linguagem. Agora o que eu diria é que a gente não pode só culpar o passado. O que temos de perceber é que a Lei Áurea foi muito curta, muito conservadora, existiam outros projetos muito mais abrangentes. Essa lei dizia que ‘não há mais escravos no Brasil’, mas não previu qualquer forma de inserção ou de ressarcimento, e se iniciou um longo período do pós-abolição. Começa em 13 de maio de 1888 e não tem data para acabar. Nós vivemos no Brasil um racismo muito perverso, que não é só legado do passado porque todos nós temos recriado esse racismo em largas bases. Então todos nós somos responsáveis, nós duas somos brancas, sabemos o que é a branquitude, como ela é uma norma no Brasil, de tal forma que não racializamos a branquitude. Quando falamos de questão racial estamos sempre falando dos negros, quiçá dos indigenas, é hora de racializar a branquitude e entender qual é o nosso papel nessa questão. E atuar, como diz a Angela Davis, de forma antirracista. E parar com essa história de só culpar o passado, ou seja, vamos fazer 200 anos, já temos aí uma maioridade para assumir as nossas responsabilidades que são imensas. E nós não teremos uma democracia, como diz a Coalizão Negra Por Direitos, enquanto formos tão racistas.

Você disse em uma entrevista que o Brasil é um país sem memória. Qual a importância de celebrar o bicentenário da independência neste contexto?

A importância é imensa. Temos de lutar pelo direito à memória. Basta ver que tivemos a Comissão da Verdade, ou mesmo uma constituição muito avançada em 1988, mas que concedeu anistia aos militares. As consequências dela estão se fazendo hoje, neste dia da nossa conversa (20 de abril), com o nosso vice-presidente Hamilton Mourão dizendo ‘para quem importa lembrar da tortura?’ Por conta dos arquivos que foram descobertos. Importa para todos nós, não só para as mães que perderam filhos, irmãos que perderam os irmãos, para as famílias que perderam parentes. Importa para todos nós que queremos saber a verdade. O direito à memória, à verdade, é constituído pelas nossas leis. A gente tem que usar as efemérides como momento de reflexão e não só de descanso. Ou seja: qual é o papel nessa independência? Que independência quero imaginar? Que projeto de emancipação quero para o meu país? O direito à memória é fundamental para todos nós que queremos viver em um Brasil mais republicano e democrático.

Acredita que o Brasil é um país independente?

Não há país totalmente independente no mundo em que nós vivemos, globalizado. Mas vamos combinar que o Brasil tem esse problema identitário, ou seja, toda identidade é uma construção, é claro, mas já foram tantas vezes que o país se encontrou e desencontrou… Neste mundo em que vivemos, todos nós somos dependentes de algo, então a independência absoluta não existe. Mas acho que precisamos constituir uma maioridade política, para não cairmos no canto dos governos autoritários, por isso temos de lembrar do 7 de setembro, não cairmos no ‘canto da sereia’, nessa ideia falha de soberania, quando o governo diz que ‘temos de ter soberania sobre a Amazônia’ e com isso fica com carta branca para destruir maioridade para enfrentar a nossa branquitude e achar uma maioria para enfrentar essa questão que sempre fez parte da história do Brasil que é o tema da desigualdade, que está na exposição Vários 22. Acho que sim, a gente vai ter de decretar a independência muitas vezes ainda.

(Miriam Gimenes/Agenda Bonifácio)

Publicada em 18 de maio de 2022