“A diferença da monarquia britânica para a do Brasil do século 19 é que, diferentemente da brasileira, a de lá é neutra em questões políticas”, diz o historiador Bruno Antunes de Cerqueira

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A morte da rainha Elizabeth II, do Reino Unido, teve grande repercussão no mundo inteiro. Por aqui, o fato de a rainha britânica ter morrido no dia seguinte ao aniversário de 200 anos da independência do Brasil suscitou lembranças sobre o nosso período monárquico – que vigorou, sem contar o período colonial, por 67 anos, entre a coroação de D. Pedro como o primeiro imperador brasileiro, em 1822, e o fim da monarquia, com a proclamação da República, em 1889.

Algumas similaridades entre os regimes monárquicos dos dois países, separados pelo tempo, chamam a atenção: Elizabeth II (1926-2022) ocupou o trono por 70 anos. D. Pedro II (1825-1891), nosso imperador mais longevo, ficou no poder por 49 anos. E ambos reinaram num período de grandes transformações políticas, econômicas e sociais no mundo. Para o historiador, advogado e especialista em Relações Internacionais Bruno Antunes de Cerqueira, porém, as semelhanças param por aí. Segundo ele, parte do grande prestígio mantido pela monarquia britânica em pleno século 21 (e também no século 19) se deve ao fato de o rei ou rainha da vez ocupar uma função cerimonial, de chefe de Estado, sem se imiscuir em questões políticas. “D. Pedro II não só tinha mais poder como se metia na política o tempo inteiro, por isso o desgaste da sua imagem era muito maior”, diz Cerqueira, um especialista em genealogia dinástica, na entrevista a seguir.

Fundador, pesquisador e presidente do Instituto Cultural D. Isabel I, Cerqueira é autor, em parceria com a historiadora Maria de Fátima Moraes Argon, do livro Alegrias e Tristezas, sobre a princesa Isabel. Segundo ele, o governo imperial já preparava a coroação de D. Isabel como a primeira imperatriz brasileira para julho de 1890, não fosse a proclamação da república por meio de um golpe militar, em novembro de 1889. “A república veio não por causa da assinatura da Lei Áurea, mas porque o movimento abolicionista ia tomar o poder”, assegura.

A morte da Rainha Elizabeth, do Reino Unido, causou comoção pelo fato de ela ter reinado por sete décadas num período de grandes transformações sociais, econômicas e políticas do mundo. Gostaria que o senhor explicasse qual será o maior desafio do rei Charles III, que faz a primeira transição do trono britânico em 70 anos e em plena era digital?

Charles III enfrenta o primeiro grande desafio, qual seja o de manter a união do Reino Unido. Em Direito Constitucional se trata justamente da União Pessoal, algo que faz com que o monarca mantenha a unidade de povos diversos. Politicamente há, ainda, o desafio de iniciar reinado como idoso, havendo primeira-ministra jovem, crise econômica, recorrentes acusações sobre fausto desnecessário da corte britânica etc. Portanto, é prioritário para ele manter a aura de prestígio da Casa de Windsor. Existem casas reais que são depostas dos seus tronos, algumas voltam a reinar em seu país e outras não conseguem voltar. Há histórias de idas e vindas em vários países, há a troca de dinastias– às vezes, por causa da extinção de uma dinastia, uma nova dinastia se torna reinante. Todo esse tipo de situação acontece, e não é só no Reino Unido. A monarquia não é idêntica à realeza – isso é uma confusão que muita gente faz, pois a monarquia é o Estado monárquico nacional ou supranacional, enquanto a realeza é a dinastia reinante e que comanda essa monarquia, a própria nação. Pois bem, a monarquia passa incólume a essas variações, como as guerras. A rainha Elizabeth, por exemplo, viveu a Segunda Guerra e foi até “soldada”, equivalente a capitã, como mecânica, e trabalhou como tal. Em relação a essa perenidade de algumas monarquias, tudo depende da conjuntura política. Em Portugal, por exemplo, que consideramos o primeiro Estado nacional europeu, a monarquia de 800 anos caiu em 1910. Caiu pela conjuntura política, pelo fato de ter ocorrido um regicídio terrível em 1908 (o assassinato do rei D. Carlos e do seu filho e herdeiro, o príncipe D. Luís Filipe de Bragança) e pelo novo rei, D. Manoel II, ser muito jovem e sem experiência. As conspirações de republicanistas civis e militares levam a golpes, como o que aconteceu no Brasil em 1889, que depõem a dinastia. Muitas vezes isso não é a vontade da população. Algumas vezes faz-se um plebiscito e uma maioria opta pelo fim daquela dinastia e da monarquia que aquela dinastia encarna. Todos esses processos históricos têm singularidades, um não é idêntico a outro, têm de ser analisados de acordo com a conjuntura.

A monarquia britânica segue popular, como ocorre em outros países que a adotam. Mas nos países que não seguem o sistema monárquico existe sempre uma dúvida sobre sua relevância nos dias de hoje. Como explicar a popularidade da monarquia uma vez que bandeiras atuais do mundo moderno, como a diversidade e inclusão social, em certa medida entram em choque com o exclusivismo elitista de reis, rainhas e dinastias hereditárias, características marcantes das monarquias?

Isso é muito curioso. As pessoas sempre perguntam sobre o anacronismo da monarquia hereditária, mesmo que ela seja constitucional e parlamentar. Mas não perguntam sobre o anacronismo das repúblicas presidenciais – em que o Estado e o governo são uma coisa só, o que é um anacronismo gigantesco, e é mantido em vários países, muito deles ditatoriais. As pessoas veem o anacronismo da monarquia, que é patente. Essa coisa toda que a monarquia, sobretudo a britânica, representa — de uma família real no trono, de conspirações, de fofocas palacianas – leva muita gente a perguntar: como o mundo moderno mantém tudo isso? Ora, o mundo é moderno e tem repúblicas cleptocráticas, que não deveriam existir. Existem repúblicas plutocráticas, e a brasileira é cleptocrática, plutocrática e oligárquica. Já a doutrina monarquista — que não é uma só, são vários pensadores – diz o seguinte: acima das oligarquias e da plutocracia está a monarquia. E isso é um fiel garantidor da reiteração dos direitos civis e das liberdades daqueles povos. Aliás, existe no anedotário político uma frase célebre de um imperador da Áustria, que foi ridicularizado por um presidente dos Estados Unidos, que perguntou: “Afinal, para quê o senhor serve, majestade?”. O imperador respondeu: “Minha existência é justamente para impedir que maus governantes governem o meu povo.” O que ele quis dizer foi que o presidente pode ser qualquer coisa, porque foi eleito por um partido e pode ser um péssimo governante, enquanto ele está acima do primeiro-ministro, que é quem governa. Ou seja, é preciso separar quem é chefe de Estado e quem é chefe de governo. Os reis são chefes de Estado, superiores aos chefes de governo. E quem é socialista ou comunista? Também são anacrônicos. São a favor de outra coisa – como, por exemplo, da ditadura do proletariado. As pessoas falam de anacronismo como se fosse algo de apenas uma instituição. Mas são vários os anacronismos em relação à história política.

A monarquia portuguesa, que deu origem à brasileira, caiu em 1910, após um longo desgaste entre os portugueses. O que leva uma casa real de centenas de anos, como a portuguesa, a perder apoio até ser derrubada?

As crises econômicas sempre levam a quedas de governos, seja qual for o sistema adotado. Uma crise econômica gravíssima, como a de fome que atingiu os franceses na era pré-revolucionária, de 1789, leva a algum tipo de rebelião, militar ou popular. Ou seja, crises econômicas geram crises políticas. Mas quando você tem a conjunção disso tudo – e foi o caso da monarquia de Portugal, em 1910 –, gera desgaste. Havia uma crise com o império colonial português, que o salazarismo posterior acabaria postergando sua finalização por décadas, mesmo porque era difícil Portugal se desfazer das colônias e estas se livrarem de Portugal. Além disso, como disse, em Portugal houve um regicídio terrível, seguido da ascensão ao trono de um rei muito inexperiente. E os políticos da ocasião, sempre ávidos de poder, queriam instalar uma república. Foi isso que aconteceu. Em Portugal não houve um plebiscito, assim como não ocorreu no Brasil. Se fizer plebiscito quando essas dinastias são depostas, a chance de a população votar contra o fim da monarquia é imensa. Por isso que não é feito. É tudo muito premeditado nesse sentido. O rei D. Manoel II, em 1910, poderia reagir – assim como seu tio-avô D. Pedro II no Brasil. Eles não reagiram para que não houvesse derramamento de sangue, embora isso não tivesse impedido que a violência prosseguisse depois, pois sempre há mortes, perseguidos e presos políticos nessas repúblicas que se instauraram, tanto aqui quanto em Portugal. No Brasil, inclusive, a violência foi maior – apesar de os livros didáticos assegurarem que não ocorreram mortes, a partir da década de 1890, milhares de brasileiros morreram nas guerras decorrentes da república, como a Revolução Federalista, a Revolta da Armada e a Guerra de Canudos. Portanto, é mentira que não ocorreram mortes com a proclamação da república no Brasil. Só que a gente é ensinado de uma maneira que essas revoltas não são conhecidas por ninguém. Vários monarquistas, até de elite – conselheiros, secretários de Estado, etc – foram presos. Joaquim Nabuco tinha medo de ser assassinado, o cunhado dele fugiu para Paris com a família. Essa narrativa, de que o povo quer a república porque é mais moderna, vem dos propagandistas da forma republicana de governo. No século 19 ela cresceu, não só em Portugal e no Brasil, como no mundo inteiro, incluindo o Reino Unido — havia no tempo da rainha Vitória um movimento republicano. Só que nunca foi popular, sempre foi de elite. A Casa de Windsor continua reinando no Reino Unido justamente porque houve uma separação clara entre Estado e governo, entre o poder do rei e o poder do Parlamento.

É inevitável a comparação da monarquia britânica com o período de vigência da monarquia brasileira, que vem sendo revisitada e discutida por causa das comemorações do bicentenário da independência. Elizabeth II assumiu o trono com 25 anos e reinou por sete décadas. Já o imperador Pedro II foi o monarca mais longevo do Brasil, permanecendo 49 anos no trono, mas assumiu ainda muito jovem, com apenas 14 anos. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre o reinado de Pedro II e se é possível comparar sua atuação com a da rainha Elizabeth nesse aspecto, de longevidade no trono.

Não é possível fazer essa comparação porque ambos governaram em períodos muito distintos. Mas tem alguns aspectos curiosos. A trisavó da rainha Elizabeth, rainha Vitória, é totalmente comparável a D. Pedro II e à filha dele, D. Isabel. Aliás, os políticos faziam comparação na época e queriam que D. Isabel, do Brasil, se comportasse como a rainha Vitória – que era absolutamente neutra em questões políticas. Isso tinha a ver com o abolicionismo de D. Isabel, que era privado, mas que no ano de 1887 e 1888, na última regência, se tornou público. D. Isabel, a herdeira de Pedro II e futura imperatriz, era condenada por isso. D. Pedro II tentou sempre se manter neutro. Mas é evidente que nenhum ser humano é neutro, nem os monarcas, assim como os juízes, mas têm o dever de ofício de neutralidade. De fato, dá para comparar D. Pedro II e a rainha Vitória: ambos ascenderam ao trono muito jovens e governaram até morrer (D. Pedro estava debilitado no fim da monarquia). A rainha Vitória, inclusive, manteve-se no trono até a transição do século 19 para o 20. O filho dela governou por apenas dez anos, exatamente como agora deve ocorrer com o rei Charles III, que tem 73 anos e não deve ter reinado longo. No caso de D. Pedro II e da rainha Vitória, os dois encararam desafios em seus reinados, mas o poder constitucional da rainha britânica era mais restrito do que do primo brasileiro. D. Pedro II não só tinha mais poder como se metia na política o tempo inteiro. Por isso, o desgaste da imagem de Pedro II era muito maior no fim da vida se comparado ao da rainha Vitória. Só para se ter uma ideia: D. Pedro II assinava férias de juiz e de desembargador. A centralização de poder para o imperador do Brasil, em coisas comezinhas, era muito grande. Isso, no terceiro reinado, seria muito diminuído – era a transição, uma democratização muito maior da monarquia que estava chegando, mas não chegou. Outro dado interessante, referente às duas monarquias: a rainha Elizabeth tinha o nome que, em português, seria Isabel, o mesmo de D. Isabel do Brasil. As duas mulheres, como governantes – D. Isabel foi governante do Império por três vezes, ou seja, uma imperatriz que não chegou a ser coroada, mas foi princesa regente –, tinham um nome que, para elas, significou muita coisa: em hebraico arcaico, “aquela que existe para louvar a Deus”. As duas tinham uma personalidade que leva muito em conta o significado de seu nome. A rainha Elizabeth inúmeras vezes declarou que era uma monarca cristã e só entendia a vida e a vivia porque tinha fé. E a D. Isabel era católica devota. De qualquer forma, a rainha Elizabeth, no século 20, não teve nenhum ou nenhuma monarca comparável. Houve chefes de Estado que duraram até mais que ela – o rei da Suazilândia ficou no trono mais tempo, porque reinou desde criança –, mas a rainha Elizabeth foi incomparável como símbolo da monarquia no mundo inteiro, tanto no século 20 como no 21.

O Brasil teve duas mulheres na época da monarquia que ocuparam papel político relevante na nossa história, a imperatriz Leopoldina e a princesa Isabel. Mas sempre sofreram o preconceito por serem mulheres, o que expõe o caráter patriarcal de nossa sociedade, um traço característico desde o período colonial. O senhor acredita que, durante a nossa monarquia, seria impossível imaginar o Brasil coroando uma imperatriz por causa desse preconceito de gênero?

Não acredito. Mesmo porque sou autor do livro Alegrias e Tristezas, junto com Maria de Fátima Moraes Argon, fruto de uma pesquisa histórica aprofundada sobre D. Isabel do Brasil.  Nesse livro a gente explica que, embora houvesse, sim, muito preconceito das classes dirigentes para uma mulher governante e apesar de muita coisa que se dissesse de D. Isabel – que ela subordinada ao marido (o príncipe francês Gastão de Orléans, o Conde d’Eu), que o marido mandava nela, etc –, isso não se alastrava na população como um todo. Mas, sim, porque ela foi abolicionista publicamente, ela se tornou antipática para grande parte das classes dirigentes, mas não todas. A maior parte dos nobres que ela titulou — condes, barões e viscondes, que eram donos de terras e de escravos — não aderiu à república em 1889. Isso provamos no livro com tabelas, que mostram a posição de todos esses nobres. Inclusive tem um ou outro titular do interior do Brasil que eu coloquei no livro como “probabilidade de sim” ou “probabilidade de não”, e descobri depois que não só não aderiu à república como fez rebelião monarquista. Ou seja, provamos que várias das narrativas da historiografia sobre essa transição são fruto de “opinião” do historiador da vez, e não de pesquisa. Portanto, sobre sua pergunta do que iria acontecer: D. Maria I (1734-1816) já tinha sido rainha reinante de Portugal, do Brasil e Algarve – no final, estava demente –, e as regentes do reino em Portugal foram inúmeras quando os maridos estavam doentes ou afastados. Aliás, a avó de D. Isabel, a D. Leopoldina, também foi regente e convenceu D. Pedro a declarar independência. Portanto, não é procedente esse veto a uma possível coroação de D. Isabel. Ela seria imperatriz do Brasil – neste caso, seria coroada na Candelária – quando D. Pedro II morresse ou abdicasse.  E muitos políticos queriam que ele abdicasse a favor dela antes de morrer, mas ele não aceitou: embora dissesse que não era apegado ao poder, era sim, porque era imperador desde criança. Senão eu acreditaria que a república veio só porque ela assinou a Lei Áurea. E não foi por causa da assinatura, mas porque o movimento abolicionista ia tomar o poder. São coisas muito diferentes. Não era a abolição por si, mas o abolicionismo. Logicamente houve uma reação dos escravocratas, que aderiram à república e a mantiveram durante 40 anos, a República Velha, até Getúlio Vargas ascender ao poder.

Então o sr. acredita que a abolição da escravatura, assinada pela princesa Isabel, foi decisiva para a queda da monarquia no Brasil?

Abordo isso com profundidade, ao longo de quase mil páginas, no livro Alegrias e Tristezas. O fato é que a historiografia é muito dividida em relação a isso. Parte dela, falando em termos positivistas – e nós, historiadores, somos herdeiros de uma longa tradição positivista –, acredita em teleologia, que as coisas vão acontecer em determinado momento. Eu, por exemplo, não acredito em nada disso – mas acredito que, no passado, havia vários futuros. E no “futuro do pretérito” do movimento abolicionista e dos isabelistas não ia ter república. Mesmo que os abolicionistas não fossem maioria, os outros grupos estavam se esfacelando (o Partido Conservador cindiu), havia uma grande cizânia política. O primeiro-ministro que foi alçado ao poder, Visconde de Ouro Preto, era liberal e já era primeiro-ministro quando o título tinha sido dado (ou seja, era um isabelista ao modo dele), e a transição do segundo reinado para o terceiro se daria, provavelmente, em julho de 1890 — D. Pedro II ia abdicar no jubileu de ouro do reinado efetivo e D. Isabel ascenderia. As festas já estavam sendo programadas pelo Visconde de Ouro Preto. Com o tempo, o partido abolicionista, que estava sendo formalizado por Nabuco e André Rebouças, iria tomar o poder e fazer as reformas que eles queriam – eles não trabalhavam apenas por humanismo ou pelos olhos azuis da princesa Isabel, todos queriam o poder. O que provavelmente ia acontecer? A principal reforma, anunciada na fala do trono de D. Pedro II, em 1889, era a reforma agrária. Embora muita gente diga que é contrafactual falar no que não aconteceu, costumo repetir: ora, e a factualidade submersa, aquilo que não é estudado? De uma década para cá, isso voltou a ser estudado. Mas existiu um abolicionismo que continuou no pós-abolição, só que foi esmagado – e a culpa não pode ser dos abolicionistas. Portanto, a transição do segundo para o terceiro reinado já ocorreu na terceira regência isabelina. E se ela não veio, foi porque a república foi proclamada. E não foram os abolicionistas que a proclamaram.

O sr. acredita que o Brasil de fato é um país independente?

Isso é muito curioso. Acredito que a maioria do nosso povo não é cidadão ativo e, portanto, nossa democracia é uma infanta. Acredito que nosso povo é muito precário em relação à democracia. Nessa linha, um dos sentidos de independência é ululante, que é a soberania popular – hoje nós entendemos que o povo é soberano. Mas não acredito nisso. Acredito que a independência se construa todos os dias, mas com um povo não-soberano porque não é cidadão na prática –alijado da cidadania pela imensa exclusão socioeconômica da população –, nossa independência está longe de ser concretizada nesse sentido.  Outra coisa completamente diversa é dizer que não fomos independentes nas décadas de 1820, 30, 40 e 50, quando o Estado nacional se solidificou. Aí estaria falando uma bobagem: acredito que, enquanto Estado, nação, durante todo o século 19 fomos nos constituindo. Faltava que a escravidão fosse abolida e os negros, considerados cidadãos. Sempre digo isso: em plena votação da Lei Áurea, havia deputados que diziam que os negros não eram brasileiros, e sim africanos – e, portanto, não eram cidadãos. Sei muito bem, como especialista em abolicionismo, que isso era uma mácula. Ou seja, juridicamente, os negros escravizados não eram brasileiros, eram um meio-termo. Portanto, a Lei Áurea foi, a seu tempo, um estatuto de equidade racial. Isso é inegável, não é porque a lei só tem dois artigos. Ela foi uma declaração de equiparação entre brancos e negros. Mas a cidadanização dos negros não poderia acontecer em um ano. Isso é um delírio que comentam hoje em dia. Tanto que muitos especialistas negros dizem que “a república nos deve o que a monarquia não fez”. Eles culpam muito a monarquia, afirmando que o Estado imperial era escravista. De fato era, mas a realeza desse Estado imperial não era escravista. É uma contradição do século 19. A república deveria, sim, fazer o que a monarquia não fez. E a república nunca fez isso, pelo menos em toda a República Velha. Ao contrário disso: a República Velha foi demofóbica e negrofóbica. Como iria fazer algo para beneficiar os antigos escravizados?

(José Eduardo Barella/Agenda Bonifácio)
Publicada em 13 de setembro de 2022

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